18 de maio é Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Enquanto grupos reacionários defendem a volta da internação compulsória como forma de lidar com o combate às drogas, vícios em geral até contra questões morais e comportamentais que esses movimentos consideram indesejáveis, a trágica história de um cearense nos mostra o mal que a manicomialização pode propiciar.
O ano de 2024 marca os 25 anos da morte de Damião Ximenes Lopes, o cearense de Varjota, município do norte do estado, distante uma hora de Sobral. Ele tinha 30 anos quando foi assassinado, vítima de espancamento e tortura na Casa de Repouso Guararapes, clínica psiquiátrica sobralense, em outubro de 1999.
O absurdo do caso levou à primeira condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos e é emblemático na luta contra a violência no tratamento na saúde mental, impulsionando uma reforma psiquiátrica nacional, mas, não tem o devido conhecimento público e a visibilidade que merece e atualmente, necessita.
Eu conheci sua história por alunos varjotenses que me contaram a trágica narrativa, em aula, ao debatermos as violências do autoritarismo contra os marginalizados institucionalizados. O mote da aula era o documentário “Holocausto Brasileiro” de Daniela Arbex, que denunciou uma das maiores barbáries do Brasil, os crimes cometidos na parceria público-privada do hospital Colônia de Barbacena.
O centro médico recebia pacientes mentais e aqueles que a sociedade rotulava como indesejados - homossexuais, prostitutas, mulheres “desviadas”, mendigos, alcoólatras – “antissociais”, em geral. Mais de 60 mil internos morreram no lugar, de frio, fome, espancamento e todo tipo de moléstia, executados pelo descaso consentido, pela indiferença intencional do Estado e da sociedade.
O horror mostrado em massa no hospital colônia foi vivido particularmente por Damião Ximenes e por aqueles incontáveis anônimos e desconhecidos, silenciados e ocultos, que não tiveram sua dor narrada em autos ou produções. No entanto, são vítimas de séculos de limpeza social de governos e elites que, apresentavam projetos civilizatórios e modernizadores, quando, na verdade, consolidaram um Estado onde a exclusão é norma e a violência contra o diferente é naturalizada.
O tratamento dado a esses indesejados é normalmente alvo de desprezo e descaso. Eles são comumente alvo de descarte. Damião experimentou esse tratamento, entretanto, a revolta e movimentação de sua família não provocou uma intensa reação.
O jovem foi trazido de Varjota a Sobral para tratar uma depressão grave, internado, morreu três dias depois na clínica que prometia ampará-lo. A mãe de Damião, Albertina Ximenes, conta que encontrou o filho amarrado com as mãos nas costas, sangrando, com as roupas rasgadas, com cheiro de excrementos. Ela disse que a realidade dele era "desumana" e que estava irreconhecível, gritando e pedindo ajuda.
A senhora então pediu ajuda ao diretor clínico e médico do hospital, Francisco Ivo de Vasconcelos, que receitou medicamentos para o paciente, a notícia seguinte que Albertina recebeu foi da morte do filho. A clínica indicou que Damião havia falecido em decorrência de uma parada cardiorrespiratória.
Os parentes registraram queixa-crime e denunciaram o caso a entidades e grupos de direitos humanos. Por meio de cartas e e-mails, o caso ganhou repercussão e apoio da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Ceará, do Ministério Público e suporte jurídico da ONG Justiça Global, que contribuíram na denúncia internacional.
Em novembro de 1999 a irmã de Damião, Irene Ximenes liderou a processo internacional contra o Brasil. Um ano depois, a repercussão do caso levou ao fechamento da Casa de Repouso. A Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou - por sete votos a zero - que foram violados o direito à integridade pessoal de Damião e condenou o Brasil em uma decisão até então inédita.
Condenação histórica
A Corte internacional concluiu que o Estado violou direitos à vida, a integridade pessoal de Damião, de sua família e o próprio processo legal em razão da ineficiência em punir os responsáveis pelos crimes identificados. Os exames e laudos realizados no decorrer do processo apontaram a extrema violência no tratamento de Damião, suas lesões apontaram morte sob tortura e em decorrência de traumatismo craniano.
O Estado brasileiro foi condenado a indenizar os familiares de Ximenes Lopes pelos danos materiais e imateriais provocados a acelerar a investigação e punição dos envolvidos nos eventos que levaram à morte do jovem e promover mudanças nas práticas manicomiais visando evitar a repetição de crimes dessa natureza.
O governo brasileiro foi condenado a pagar indenização de R$ 278 mil por danos morais e materiais à família de Damião Ximenes. A Corte cobrou celeridade na investigação criminal dos responsáveis pela morte de Damião e capacitação profissional no atendimento psiquiátrico no Brasil.
A justiça brasileira condenou a Casa de Repouso Guararapes, o médico Francisco Ivo de Vasconcelos e o diretor clínico, Sérgio Antunes Ferreira Gomes - em ação cível - a pagar R$ 150 mil de indenização aos familiares de Damião Ximenes e – em ação penal - por lesão corporal grave resultando em morte a 4 anos de reclusão, mas o Tribunal de Justiça do Ceará, decidiu pela extinção da punibilidade. Ambas as ações seguem em andamentos com interposições adiando uma conclusão ao doloroso processo.
Em 2023, o site do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania anunciou uma chamada Pública para “entidades, usuários e usuárias dos serviços de atenção à saúde mental, familiares, coletivos, representantes da sociedade civil e da academia, gestores, servidores públicos e organizações da sociedade civil”. O objetivo era construir o “Curso permanente Damião Ximenes Lopes - Direitos Humanos e saúde mental” [...] para atender a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Ximenes Lopes Vs. Brasil.
25 anos depois a luta antimanicomial continua
As ações ligadas a condenação internacional pouco impactaram a sociedade além do setor psiquiátrico. Recentes iniciativas políticas ameaçavam trazer a lógica do isolamento manicomial a sua antiga força. Pensar nas incontáveis mortes de Barbacena, pensar na dor particular e não menos intensa do cearense Damião Ximenes Lopes e sua família é alertar para esse desmando.
As lembranças de histórias de arbitrariedade, desespero, dor e angústia contra aqueles que, na fragilidade e desamparo, procuraram auxilio em pessoas que deveriam estar preparados para lidar com demandas e dificuldades específicas, mas que responderam com violência e opressão é recordar o mal que o higienismo e a limpeza social podem causar. É preciso se levantar contra um Estado que se vale do pior que o ser humano possui como arma de controle e padronização social.