Antes de julgar, escute: o que podemos aprender com o caso Adnan Syed

Na famosa “A República”, de Platão, Sócrates e outros cidadãos de Atenas dialogam (às vezes, com ânimos acirrados) sobre algo que todos já ouviram falar mas poucos sabem explicar: a Justiça. Dentre os vários que se arriscam a dar seu palpite, está Glauco, irmão de Platão. Diante de todos, Glauco afirma que a Justiça não é uma virtude, nem um bem; ao contrário, ela seria apenas uma necessidade, um instrumento: o legítimo e o justo seria aquilo que estivesse na lei.

Deste modo, a Justiça não seria nada divino, nada grandioso, mas apenas um conceito que varia entre dois opostos: cometer uma injustiça e não ser punido ou sofrer uma injustiça sendo inocente e sem ter possibilidade de defesa.

Obviamente, para um idealista como Sócrates, que acreditava que a Justiça era uma virtude e pertencia a um mundo mais elevado, essa ideia de Glauco era absurda. Sócrates termina desacreditando-o na frente de todos.

Lamentavelmente, contudo, a história deu razão a Glauco. Cada vez menos se dá importância à busca por justiça. Cada vez mais se dá importância à punição. Apontar um culpado – de preferência, rapidamente e sem direito a defesa – é muito mais relevante do que investigar a culpa. Um caso emblemático, que coloca em xeque nosso ideal de Justiça e que também nos leva a refletir, teve seu desfecho nesta semana: o de Adnan Syed.

Este nome pode soar inteiramente desconhecido para nós brasileiros, mas é bastante familiar à maioria dos norte americanos. Em 1999, Syed era um adolescente muçulmano de 17 anos e seus pais eram imigrantes paquistaneses. A família de sua namorada, Hae Min Lee, 18 anos, também era de imigrantes, mas coreanos. Ambos gostavam de esportes e eram pessoas queridas na escola, pelos colegas e professores. O romance chegou ao fim e, logo em seguida, sua ex-namorada iniciou um novo relacionamento - e não tardou para que uma tragédia acontecesse.

Hae Min Lee estava desaparecida por quase um mês quando foi encontrada enterrada em um parque - havia sido estrangulada. No ano seguinte, 2000, após as investigações e o testemunho de um colega de sala, que afirmou ter ajudado Syed a enterrar o corpo, Adnan Syed foi condenado à prisão perpétua.

Há 23 anos cumpria sua pena, há 23 anos afirmava ser inocente. Nesta terça-feira, dia 11 de outubro, de fato, foi inocentado, está livre. E você, que leu até aqui e que não conhece o caso, pode afirmar: “Que absurdo! Por que esse assassino foi solto?”. Continue lendo.

Entre os 23 anos que separam a condenação de Syed e a sua liberdade; entre os dedos que o apontaram às línguas mordidas, muita coisa aconteceu, entre elas, uma parece ter sido primordial: em 2014, novas peças vieram à tona quando um podcast, “Serial”, dedicou-se ao caso e colocou alguns pontos de interrogação sobre as investigações.

Por que a pessoa que afirmava que estava com Syed na hora do crime, seu álibi, não foi sequer chamada pela advogada de defesa? Por que nunca havia sido feito um teste de DNA nas evidências do crime de 1999 a fim de saber se eram compatíveis com a de Syed? Por que o testemunho de seu colega, que o acusava, havia mudado em vários pontos ao longo do tempo e tinha várias inconsistências?

Por que o namorado de Hae Min Lee não foi investigado? Por que o álibi deste namorado, baseado no relato de sua própria mãe, não foi investigado? Como Syed teria tido um julgamento justo se sua própria advogada de defesa, Maria Cristina Gutierrez, foi considerada negligente, tendo sido cassada posteriormente devido às queixas de vários clientes?

Antes que dedos a apontem, talvez também valha esclarecer: foi ainda em 1999 que a advogada Maria Cristina Gutierrez começou a perder a memória e a visão, devido a efeitos do diagnóstico da esclerose múltipla, agravada pela diabetes, que findou por tirar sua vida apenas quatro anos depois, em 2004 – ela já nem sequer conseguia lembrar o nome do próprio filho. Como Syed poderia ter tido uma defesa justa nestas condições?

O trabalho meticuloso de pesquisa e investigação realizado pela jornalista Sarah Koening, no aludido no podcast, gerou bons frutos: o programa foi premiado, baixado mais de 175 milhões de vezes; o caso se tornou uma série/documentário de quatro episódios da HBO, indicado ao Emmy e, em 2020, a empresa por trás do podcast, a Serial Productions, foi comprada pelo The New York Times Productions por mais de 20 milhões de dólares.

O sucesso da série televisiva fez com que os promotores concordassem que um exame de DNA oficial fosse realizado e finalmente, depois de 23 de uma prisão injusta, todas as acusações contra Syed foram retiradas. Mas, e agora? Ele está “livre”, mas o que isso quer dizer? É possível dizer que “a justiça foi feita”? Ele está livre da prisão, mas boa parte do seu passado está na cadeia; ele está livre da prisão, mas com marcas indeléveis para toda a vida.

Syed foi julgado rápido demais – talvez, em parte, por ser um imigrante muçulmano. Infelizmente, a realidade de Syed não está distante da nossa: um relatório de 2022 da Defensoria Pública do Rio de Janeiro aponta que 30% das prisões no Estado são injustas e quase 80% permanecem presos durante mais de um ano.

Se há algo que podemos refletir sobre o caso de Syed, e de tantos outros, é que esse tipo de incongruência, de falha no julgamento, não está apenas nas instituições, mas em nós mesmos. Em nossas relações sociais, conjugais, familiares, também julgamos o outro ignorando as evidências contrárias.Muitas vezes, desconhecemos a realidade do outro lado e não buscamos conhecer as outras verdades.

Utilizamos nossas crenças para apontar a culpa ou para acatar uma acusação baseada em relatos que, nem sempre, são verdadeiros. Ao agirmos assim, estamos assumindo o risco de contribuirmos para o pior cenário de Glauco: fazer com que alguém sofra uma injustiça sem possibilidade de defesa.

Somos 7 bilhões de pessoas no mundo, com realidades, culturas e sociedades diferentes. Julgar e punir são atos que deveriam considerar toda essa complexidade. Não deveria ser algo baseado em crenças, mas em evidências – o que exige escuta ativa, entender o outro lado. É preciso cautela para apontar um dedo e fazer ou acatar uma acusação: é um ato que pode gerar consequências avassaladoras e duradouras.

Fico feliz que Syed tenha encontrado uma chance de provar sua inocência ainda em vida – tantos outros não tiveram essa sorte. Todas as vezes que julgamos sem ouvir, sem abrir mão das nossas verdades, ou sem considerar a realidade do outro, a Justiça se torna apenas um instrumento: Glauco vence e Sócrates perde, é desolador.

 

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora