Agora, após o Vaticano ter comunicado oficialmente à diocese do Crato a abertura do processo de beatificação de Padre Cícero, cabe perguntar: quando a Igreja Católica irá se redimir e reabilitar a memória da beata Maria de Araújo? Ela foi a verdadeira protagonista dos supostos milagres de Juazeiro do Norte. Mas, por ser mulher, negra, sertaneja, lavadeira, pobre e analfabeta, acabou esquecida e vítima de uma tentativa etnocêntrica de apagamento histórico.
Maria de Araújo não teve sequer direito a uma sepultura definitiva, onde cujos ossos pudessem descansar em paz. Em 1930 — dezesseis anos após sua morte —, por ordem do então vigário de Juazeiro do Norte, padre José Alves de Lima, o túmulo de Maria, localizado no interior da capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, foi violado a golpes de marreta e alavanca. Os restos mortais, retirados dali, desapareceram para sempre.
Padre Cícero, avisado da profanação do jazigo, acorreu ao local, mas ao chegar só encontrou o sepulcro vazio e semidestruído. Entre os pedaços da alvenaria demolida, havia fragmentos de pano e estilhaços enegrecidos do velho caixão de madeira. Dos escombros, resgatou-se o escapulário que Maria usava em torno do pescoço e o cordão do hábito marrom com que fora enterrada.
O padre recolheu os objetos, colocou-os em um vidro e foi ao cartório municipal registrar um protesto junto ao tabelião público da cidade. “A violação do túmulo foi de surpresa, sem proceder autorização legal, sem conhecimento sequer do zelador do cemitério”, fez constar no documento. A reclamação, porém, ficou sem resposta. A Igreja jamais revelou o paradeiro dos ossos de Maria de Araújo.
Quando do alegado milagre eucarístico — segundo afirmava Padre Cícero, a hóstia sagrada transformava-se em sangue sobre a língua da beata —, as autoridades eclesiásticas haviam ordenado a incineração de todos os paninhos manchados com o sangue proveniente da boca de Maria de Araújo.
Sem os panos, e sem o corpo, inviabilizou-se qualquer eventual teste de laboratório, que serviria hoje para cotejar as amostras dos dois materiais. O DNA do sangue seria compatível com o dos ossos, o que indicaria que os sangramentos eram provenientes do corpo da própria Maria de Araújo?
Não sabemos. Maria de Araújo, em vida, foi acusada de falsificar o fenômeno, com a conivência do polêmico sacerdote, por meio de truques baratos de química. Também imputaram-lhe mazelas, como a tuberculose ou a incidência de úlceras bucais, para explicar o fenômeno — embora os médicos que a examinaram, em decorrência do inquérito eclesiástico movido contra Padre Cícero, tenham descartado tal hipótese.
Segundo os diagnósticos clínicos, Maria era uma mulher desnutrida, de saúde frágil, mas sem nenhuma enfermidade que pudesse ser apontada como causa de possíveis sangramentos na cavidade oral. Os dois padres encarregados de investigar o caso, Antero e Clicério, respeitáveis intelectuais enviados a Juazeiro pelo então bispo do Ceará, Dom Joaquim, não encontraram explicações para o mistério.
O relatório circunstanciado que ambos escreveram ao bispo afirmava, textualmente, que seria impossível atribuir causas naturais ao prodígio. Indignado, Dom Joaquim os desautorizou e, por meio de nova investigação em regime de rito sumário, confiada ao pároco de Quixadá, padre Alexandrino, declarou Padre Cícero culpado e Maria de Araújo, além de cúmplice, histérica.
Os papéis do processo que constam nos arquivos do Vaticano revelam um julgamento eclesiástico eivado de eurocentrismo. “Nosso Senhor Jesus Cristo jamais sairia dos campos da Europa para fazer milagres nos sertões do Brasil”, dizia a frase atribuída ao padre francês Pierre-Auguste Chevalier, então reitor do Seminário da Prainha.
Ao passo que outros presumidos milagres eucarísticos ocorridos em território europeu foram devidamente reconhecidos por Roma, o episódio de Juazeiro do Norte ficou classificado como um embuste, uma farsa engendrada por uma “gente ignorante”, “supersticiosa” e “sem instrução”.
Quando escrevi a biografia “Padre Cícero: Poder, fé e guerra no sertão” (Companhia das letras, 2009), não estava interessado em investigar a autenticidade do tal “milagre de Juazeiro”. Como costumo afirmar, não sou exatamente uma pessoa religiosa, não sou dado a acreditar em santos — e muito menos em milagres.
No papel de pesquisador, sempre estive mais preocupado em compreender os desdobramentos históricos do acontecimento. Mas, durante a pesquisa para o livro, confrontei-me com muitos de meus próprios preconceitos de homem branco e agnóstico, nascido no litoral e no meio urbano. Tive então que proceder a um mergulho etnográfico no universo dos romeiros, para só então entender a visceralidade e a força da fé sertaneja.
Investigar a vida de Padre Cícero — e permitir-me ao necessário exercício de alteridade na relação com seus devotos — mudou muitas de minhas perspectivas como escritor, pesquisador, jornalista, cidadão e, posso dizer, ser humano.
Por isso mesmo, sinto-me com algum relativo conhecimento de causa para estranhar que o benefício, ora aplicado pela Igreja a Padre Cícero, não seja estendido a Maria de Araújo.
É inegável que a reabilitação canônica de Cícero Romão Batista faz parte de uma estratégia católica em reação ao avanço neopentecostal no Brasil. Ante a sangria de fiéis, Roma não poderia continuar ignorando e deixando à margem do rito oficial a legião de devotos de Padre Cícero, que o têm na conta de um homem santo.
Todavia, por uma questão de justiça, em meio a esta reavaliação eclesiástica, Maria de Araújo não pode ser mais uma vez esquecida, vilipendiada e apagada da história. Sem ela, não haveria o mito em torno de Juazeiro do Norte. Sem ela, não haveria uma Jerusalém cabocla. Sem ela, não haveria sequer Padre Cícero.
*Este texto expressa, exclusivamente, a opinião do autor