Que Gilberto Gil nos inspire com sua bondade radical

Ainda estou em estado de graça. Assisti, no último final de semana, de uma enfiada só, aos cinco episódios da recém-lançada série “Na casa com os Gil”, na Amazon Prime Video. Para quem ainda não viu, recomendo: veja, é uma belezura sem igual.

Para quem não sabe do que se trata, explico: ano passado, durante o auge da pandemia, nos preparativos para a atual turnê europeia, Gilberto Gil isolou-se com toda família — filhos, filhas, netos, netas, bisnetos, bisnetas — em uma casa de serra, em Araras, interior fluminense. Juntos, aproveitaram a ocasião para comemorar os 79 anos do patriarca e definir, em “assembleia”, o repertório dos shows.

Cada integrante do clã tinha o direito de indicar uma música, justificando a respectiva escolha, cabendo o devido parecer final ao próprio Gil. O diretor de cinema e tevê Andrucha Waddington, da Conspiração Filmes, acompanhou o dia a dia do confinamento da família — e filmou tudo. O resultado é uma declaração de amor à arte, à música, à leveza, à fraternidade, à alegria, enfim, a tudo o que existe de mais belo, precioso e terno no mundo.

É, digamos, uma espécie de reality show. A diferença é que os costumeiros barracos de tal gênero televisivo são substituídos por declarações explícitas de afeto mútuo, a maioria de fazer o telespectador, a um só tempo, sorrir e chorar de emoção.

Os encontros da assembleia de família são intercalados com cenas e flagrantes do cotidiano: os preparativos das refeições na cozinha, os almoços e jantares em torno da grande mesa, as conversas no jardim entre pai e filhos, avô e netos, irmãos e irmãs, tios/tias e sobrinhos/sobrinhas.

Discutem de futebol a racismo. Acima de tudo, fazem o elogio da diversidade — característica encarnada na própria composição familiar. “Sou um adepto da bondade radical”, diz Gil a certa altura para as filhas Preta e Maria, ao comentar que a vida é feita de escolhas — e que cada indivíduo se torna a soma das atitudes para consigo mesmo e para com os outros.

É bonito constatar como todos os membros da família Gil — incluindo as crianças — sabem de cor e cantam, a uma só voz, as canções que cada um deles escolhe e propõe para ser incorporada ao repertório da turnê. Prova de admiração doméstica incontida, de reconhecimento íntimo pela obra luminosa deste artista universal formidável.

Não contive um soluço comovido quando Flor Gil, a neta de 13 anos, pede para que “Andar com fé” seja incluída na lista. “É uma música muito importante, principalmente nestes tempos de pandemia”, diz a menina, emocionada. O avô, abraçado ao violão, deitado em uma espreguiçadeira, de imediato dedilha as notas da melodia, enquanto toda a família cantarola a letra, entre risos e lágrimas, ao som de palmas cadenciadas.

Foi impactado assim por cenas tão afetuosas e delicadas que li um extraordinário artigo de Gil, publicado na Folha de S. Paulo, no domingo, dia em que ele completou 80 anos. “Brilho da ciência e da cultura vai nos tirar da escuridão”, dizia o título.

“Imaginar o futuro para o Brasil, e a partir do Brasil, é promover a urdidura entre as ciências mais avançadas e os saberes populares, entre a sensibilidade dos povos das florestas e a dos quilombos, entre os métodos dos cientistas sociais e a sabedoria das periferias, entre a ciência biomédica e o conhecimento que brota dos encontros no asfalto, na terra e na mata”, ele escreveu.

“O momento de hiperbólica oclusão política que vivemos é um capítulo da longa história de tensão entre as forças retrógradas que negam nosso potencial como nação e as forças criativas que teimam em continuar existindo”, definiu. “Precisamos superar essa tensão e pôr a cultura no coração de um projeto de país”.

Ao ler tais palavras, associei-as de imediato a outro momento tocante da série “Na casa com os Gil”: aquele que exibe um trecho da célebre reunião da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2003, na qual o então ministro da cultura brasileiro, Gilberto Gil, fez diplomatas de todo o mundo dançarem ao som de “Toda menina baiana”, acompanhado pelo secretário-geral Koffi Annan ao atabaque.

É neste Brasil, representado pela arte, sensibilidade e genialidade de Gil, que insisto em acreditar. É para este país, generoso, alegre e criativo, que um dia pretendo voltar. O brilho da ciência e da cultura, sim, vai nos tirar da escuridão. Confio na predição de Gilberto Gil, confio no povo brasileiro, confio na delicadeza, na fraternidade, na bondade radical.

Tempo rei, ó, tempo rei, transformai as velhas formas do viver.

 

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.