Aconteceu ao final de uma reunião de pais, na escola de minha filha mais nova, quando ainda morávamos em São Paulo. O sujeito, de sapatênis e camisa polo para dentro das calças, típico representante da classe média paulistana, aproximou-se de mim e perguntou: “Disseram-me que você é escritor, é verdade?”.
Quando confirmei, com um sorriso meio encabulado, ele me olhou como se eu fosse um extraterrestre. Indagou então onde poderia encontrar os meus livros. Queria conhecê-los. Tentei ser simpático e dei, é claro, a resposta óbvia: “Nas livrarias”. Ele olhou-me de volta, com cara de vazio. Alguns segundos depois, emendou: “Ah, claro, nas livrarias...”
“Um dia desses eu entrei em uma livraria”, prosseguiu, para meu espanto. “É mesmo?”, retorqui, diante do inusitado da formulação. “Você entrou numa livraria? ‘Um dia desses’?”, eu quis saber se ouvira direito.
“Sim, entrei. Lá dentro, senti uma enorme paz...”
A observação me deixou desnorteado. Que tipo de pessoa é capaz de dizer que sentiu “uma enorme paz” ao adentrar uma livraria? Será que ele não havia, por engano, entrado numa igreja ou, sei lá, em um templo budista?
Livrarias me despertam outros tipos de sentimentos, exatamente opostos a uma hipotética pacificação do espírito. Inquietação, curiosidade, excitação, por exemplo. Portanto, logo percebi estar diante de alguém que não lia — e sem a menor intimidade com o mundo dos livros.
Infelizmente, a despeito de minha momentânea estupefação, não havia nenhum motivo de assombro. Segundo a Associação Nacional das Livrarias, existem pouco mais de duas mil delas em todo o vasto território do país. O que resulta na constrangedora média de uma única livraria para cerca de cem mil brasileiros — de acordo com a Unesco, o razoável é que haja, pelo menos, uma para cada dez mil habitantes.
A insuficiência de livrarias — e, por consequência, de leitores — é um dos indicadores nacionais de nosso atraso civilizatório. O recente fechamento de megalojas sob a bandeira das grandes redes, como Saraiva e Cultura (soube, entristecido, do encerramento da filial desta última aí em Fortaleza, no RioMar), é só um dos traços mais visíveis do problema.
Ao reproduzir a lógica dos supermercados, cobrando das editoras por lugares privilegiados para exibir lançamentos nas gôndolas e vitrines, as gigantes do mercado providenciaram a própria cova.
Ficaram todas iguais, pasteurizadas, sem identidade. A estratégia de abrirem lojas colossais, com estoques desmedidos em consignação, ameaçou levar, junto com elas, as editoras para o fundo do mesmo buraco.
No outro extremo do segmento, as pequenas livrarias, especialmente as de rua, tentam sobreviver heroicamente ao massacre. Nem todas conseguem. Caso das charmosas Lua Nova e Feira do Livro, para citar só dois exemplos fortalezenses mais recentes, entre as que tiveram que fechar as portas.
Outras resistem, inclusive em Fortaleza, como a Lamarca, lá no Benfica, onde além de conferir o excelente acervo de livros pode-se tomar uma cerveja gelada acompanhada de caldinho de feijão.
No Rio de Janeiro, existe a fantástica Folha Seca, na rua do Ouvidor, de meu querido amigo Rodrigo Ferrari, o Digão. Em São Paulo, há a acolhedora Zaccara, do grande Lúcio Zaccara, em Perdizes, com seus sofás no segundo piso.
Nelas, posso garantir, a última coisa que o frequentador assíduo ou o visitante ocasional vai encontrar é “uma enorme paz”. A sensação provocada por uma boa livraria é, sempre, de arrebatamento. Um frêmito que senti, pela primeira vez, quando ainda usava calças curtas, ao ser levado por minha mãe, certa tarde, para conhecer a Renascença, do livreiro Luís Maia, na Major Facundo.
Havia uma rodinha de senhores animados, ruidosos e bem falantes e, pelo pouco que então pude entender, conversavam sobre autores e livros. Minha mãe explicou-me, sem disfarçar a admiração contida no tom de voz: “São escritores...”
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.