“Eu amo os símbolos”, disse o escritor diletante, na mesa-redonda, ao ser indagado se utilizava simbologias, metáforas e sentidos figurados em seu texto. “Pois eu não os uso, se puder evitá-los”, retrucou o escritor profissional, autor de dezoito livros. “Escrever é divertido, deixe fluir, exprima tudo o que sente”, aconselhou à plateia o diletante, que afirmava não se preocupar com o processo de reescrita. “Escrever não é divertido nem fácil”, contestou o profissional, “e reescrever é a essência da escrita”.
Indagou-se então a ambos, ao diletante e ao profissional, como fazem naqueles dias em que as ideias demoram a surgir, recusando-se a passar para o papel. “Paro de escrever e deixo o trabalho de lado, à espera de outro dia, quando as coisas podem sair melhor”, disse o primeiro. “Um escritor profissional deve estabelecer uma rotina diária e se ater firmemente a ela”, rebateu o segundo, “escrever é um ofício, não uma arte, e um sujeito que abandona seu trabalho por lhe faltar inspiração não se leva a sério”.
A plateia desejou saber então como eles, o escritor amador e o profissional, lidavam com eventuais estados negativos de espírito: uma indisposição, uma apatia, uma infelicidade qualquer. “Melhor sair para pescar, fazer um passeio”, recomendou o diletante. “Se o seu trabalho é escrever, você aprende a fazê-lo todos os dias, como qualquer outro trabalho”, discordou o profissional.
A história acima, tão hilária quanto elucidativa, é contada nas páginas de “Como escrever bem”, de William Zinsser (1922-2015), escritor, jornalista, editor e crítico literário norte-americano, professor de escrita de não ficção nas universidade de Yale e Columbia. O caso aconteceu com o próprio Zinsser, quando convidado a falar sobre seu método criativo em um debate com um cirurgião que, nas horas vagas, garatujava textos pretensamente literários.
“On Writing Well”, o título original da obra, é um manual clássico de escrita de não ficção, campeão de vendas, vade-mécum para jornalistas e escritores de sucessivas gerações. Lançado originalmente nos Estados Unidos em 1976, já vendeu mais de um milhão de exemplares e acaba de ser republicado no Brasil, pela editora Fósforo.
Para jornalistas e escritores de não ficção em geral, os conselhos de Zinsser podem soar óbvios: escreva frases curtas, preocupe-se com a clareza, corte palavras desnecessárias e elimine as repetidas, busque verbos fortes, prefira a voz ativa à passiva, tente capturar o leitor à primeira linha, procure um bom encadeamento entre os parágrafos, preste atenção aos detalhes, encontre um fecho surpreendente.
Mas a forma de Zinsser apresentar tais lições, com leveza e bom humor, sem nenhum tom pedante ou professoral, é divertidíssima. Mesmo quando finge bancar o ranzinza, revela-se espirituoso: “Em bons autores, o que predomina são as frases curtas — e não me venha falar de Norman Mailer, que este é um gênio. Se você quer escrever sentenças longas, seja um gênio”.
Lembrei do dia em que, no curso sobre escrita biográfica ministrada por mim aqui na Universidade do Porto, em Portugal, recomendei algo parecido: “Não tenham medo do ponto final. Escrevam frases sucintas. Dividam grandes períodos em duas, três ou mesmo quatro sentenças. Deixem o texto respirar. Não matem o leitor sem fôlego”. Um aluno retorquiu: “Mas e o José Saramago?”.
Tive de lembrar-lhes que não estávamos ali para emular o genial Saramago — nem muito menos para fazer literatura. O objetivo do curso é trabalhar com narrativas de não ficção. Nada de querer enfiar no texto hermetismos profundos, metáforas grandiosas, significados ocultos. “Renunciem, desde já, a qualquer tentação literária — no mais das vezes, ela conduz à literatice”.
Zinsser, como todo bom autor, recomenda-nos, entre outros pontos, fugir também dos lugares comuns. “Um escritor com ouvido para a linguagem buscará um imaginário vivo e evitará frases banais”, adverte. “O escrevinhador, ao contrário, buscará os velhos clichês, achando que enriquecerá o seu pensamento com o uso de moeda corrente, que é algo, como ele diria, ‘testado e aprovado’”.
A despeito disso, no próprio livro, esbarra-se em frases feitas. “Cair como uma pedra” e “faca de dois gumes”, por exemplo. Na tradução brasileira, há ainda um “cair como uma luva” e um “dar a volta por cima”, inexistentes na edição original. Mas isso não compromete o prazer da obra. Como diria o próprio Zinsser: “Não é que seja fácil acabar com os clichês. Eles estão por toda parte, como amigos próximos querendo ajudar, sempre prontos para expressar ideias complexas pelo caminho mais fácil das metáforas.”
Como antídoto aos interessados, sugiro o imprescindível “O pai dos burros: dicionário de lugares-comuns e frases feitas”, lançado em 2009 pelo colega Humberto Werneck, dono de um dos textos mais elegantes da imprensa brasileira contemporânea.
Na extensa lista compilada por Werneck, há centenas de expressões a serem evitadas por todos nós, profissionais da escrita ou autores diletantes, de tão gastas pelo uso excessivo.
Entre outras tantas, destaco: “abraçar uma causa”, “acreditar piamente”, “de alma lavada”, “apaziguar os ânimos”, “ser a bola da vez”, “profundamente abalado”, “busca exaustiva”, “à beira do caos”, “carta fora do baralho”, “clamar aos céus”, “rasgados elogios”, “clima de festa”, “no aconchego do lar”, “mudança drástica”, “andar nas nuvens”, “disparar telefonemas”, “passar maus bocados”, “dormir como uma pedra”, “ter razão de sobra”, “recurso extremo”, “sofrer na carne”, “grata surpresa”.
Não se trata de um index prohibitorum, ressalva Werneck, na introdução ao pequeno volume. “Não se ofenda nem se avexe se encontrar aqui alguma ou muitas de suas expressões prediletas; há várias que também são minhas”, admite. “O que se quer é recomendar desconfiança diante de tudo aquilo que, no ato de escrever, saia pelos dedos com demasiada facilidade”.
Vou meter minha colher nesse assunto. Concordo em gênero, número e grau com Werneck. Ele tem carradas de razão. Emitiu um sábio conselho, para ninguém botar defeito. Foi curto e grosso, pôs o dedo na ferida. Abriu o coração, não jogou conversa fora, iluminou corações e mentes. Sou fã de carteirinha, digo sem favor algum. É bom mesmo nos cercarmos de cuidados, repetir isso à exaustão, para não levarmos culpa no cartório. Sem sombra de dúvida, Werneck fala de cátedra. Ao fim e ao cabo, a título de modesta contribuição, assino embaixo... Oooooooops!