Soube que está chovendo no Ceará. Chuva boa, benfazeja, em uma terra seca, onde tempo bom é o nublado, “bonito pra chover” — como dizemos nós, cearenses, olhando para o alto.
Amigos daí me mandam fotos de nuvens cinza-chumbo pelo WhatsApp, postam no Instagram imagens de vidraças e janelas adornadas pelas gotas caídas do céu. No sertão, depois de prolongada estiagem, ressurge a esperança de açudes e rios recuperando as águas pedidas.
Em vez de dor, destruição e morte, como ocorreu há pouco em Petrópolis, as chuvaradas são motivo de regozijo em minha terra sofrida, marcada por estiagens perversas e cíclicas. Dói-me a cruel contradição, agravada pela ação irresponsável dos humanos na má condução da crise climática.
Do lugar de onde vim, o sofrimento decorre da escassez, não do excesso de água. “Chuva, mãe de Deus!”, exclamava minha avó Isaura, comemorando a bênção celeste. “Tomara que chova, três dias sem parar”, cantávamos, os netos, a marchinha carnavalesca eternizada por Emilinha Borba.
Menino, em Caucaia, eu corria para o quintal ou para a calçada, só de calção, para tomar banho debaixo dos “jacarés”— as canaletas instaladas nas fachadas das casas, gárgulas rústicas de dentes de zinco, que escoavam a água dos telhados e calhas, fazendo a alegria da criançada nos dias de toró.
Minha lembrança mais remota de um aguaceiro, porém, é anterior à nossa mudança para Caucaia. Morávamos em Fortaleza e, em um dia de chuva, aos sete anos, fiz um barquinho de papel com uma folha do caderno da escola, para pô-lo a navegar no riacho que se formou junto ao meio-fio em frente de casa, na Rodrigues Júnior.
A correnteza encarregou-se de levar a pequena e intrépida embarcação rua abaixo. Acompanhei a trajetória da frágil galera e, sem antes nunca ter saído sozinho, sem a companhia de meus pais ou irmãos mais velhos, não percebi que me distanciava perigosamente do porto seguro familiar, próximo à Pereira Filgueiras.
O barquinho, já quase desmanchado pelo torvelinho das corredeiras do calçamento, encalhou em uma poça de lama exatamente um quarteirão depois, na esquina da Costa Barros. Fantasiei a cena de um trágico naufrágio. Uma banda de tijolo ali jogada era a ilha perdida, na qual o único sobrevivente buscaria guarida, tal qual na adaptação de Robinson Crusoé, que eu lera numa edição ilustrada.
O estrondo de um trovão trouxe-me de volta à realidade. Olhei para os lados e não reconheci o local onde me encontrava. Estava perdido, tal e qual Robinson Crusoé. Fui salvo por minha mãe que, aflita, saíra à minha procura, sem nem sequer lembrar de pegar o guarda-chuva. Voltamos para casa encharcados, tiritando de frio.
Hoje moro aqui no Porto, uma cidade de invernos chuvosos, cujos pé d`águas me remetem a tais lembranças de infância. Dá sempre vontade de colocar um calção, correr para a rua e sair cantando a marchinha de Emilinha Borba — ou aquela canção de Gilberto Gil: “Faz muito tempo que eu não tomo chuva,/ Faz muito tempo que eu não sei o que é pegar um toró”.
Estamos aqui, no hemisfério norte, nas últimas semanas do inverno europeu. As amendoeiras já estão em flor, o rosa e branco espalhados por toda parte, anunciado a chegada próxima da primavera. Mais uma vez, ainda não tomei banho de chuva. O que diriam meus vizinhos lusitanos, tão reservados, ao ver este cearense grisalho, só de calção, pulando e cantando no meio da rua, debaixo da maior chuvarada?
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.