Atriz trans cearense abre vaquinha para representar filme em Cannes: 'Acessar lugares inimagináveis'

Jupyra Carvalho compõe elenco de "Motel Destino", dirigido por Karim Aïnouz, e também participa de "A Filha do Palhaço", que chega aos cinemas neste mês

“A arte para mim sempre foi um lugar distante. Desde a minha infância, nunca pensei que poderia acessá-la de alguma forma”, reflete Jupyra Carvalho. A cearense, no entanto, terá no mês de maio um contexto especial da carreira artística, com as estreias de dois longas-metragens e o desejo forte e coletivo de poder ser uma das representantes do longa cearense “Motel Destino”, do cearense Karim Aïnouz, no Festival de Cannes.

Para conseguir este importante acesso simbólico e concreto à estreia mundial da produção e ao evento francês — que pela primeira vez traz um longa do Estado na competição principal —, um financiamento coletivo foi lançado em prol da presença da artista no festival. A meta da “vaquinha” é arrecadar R$ 12 mil até o início do festival, em 14 de maio.

Formação no Cuca e relação com audiovisual

A experiência em “Motel Destino” é uma das primeiras da atriz no audiovisual. Formada em Teatro pela Universidade Estadual do Ceará, ela tem trajetória em diferentes espetáculos e projetos, além de atuar como produtora cultural e audiodescritora.

O estopim da relação de Jupyra com a arte, inicialmente “distante”, foi na adolescência, quando ela se interessa por teatro como forma de lidar com a timidez e a expressão em público.

“Hoje, quando olho para trás, percebo motivos para isso de forma mais clara: era também uma questão de gênero, uma vergonha de se colocar para o mundo”, aponta.

Foi no Cuca Barra, equipamento da Prefeitura de Fortaleza, que a então adolescente começou a ter contato com as artes cênicas. “Ele foi pra mim uma grande escola. Vale ressaltar a importância do equipamento para dar esse primeiro acesso artístico a jovens das periferias”, destaca.

A relação com teatro foi “se complexificando e tomando conta” da trajetória de Jupyra, levando-a a ingressar na graduação na UFC. Na época, fez ponte com estudantes de audiovisual da instituição e começou a gravar curtas universitários.

“Mas é engraçado porque sinto que minha relação com audiovisual surge, de fato, depois da minha transição, quando surge minha imagem enquanto Jupyra”, diz, citando o longa “A Filha do Palhaço”, de Pedro Diógenes, como ponto de virada. 

Na obra, que estreia comercialmente nos cinemas brasileiros em 30 de maio, ela contracena com Jesuíta Barbosa. “Ele vem como esse primeiro filme que me colocou do jeito que eu esperava que minha imagem fosse projetada no mundo”, destaca.

Experiência em “Motel Destino”

Já na trama de “Motel Destino”, protagonizada pelos também cearenses Nataly Rocha e Iago Xavier, Jupyra vive Carol. A personagem é uma jovem que tem um negócio de roupas, é ligada nas redes sociais e se envolve com uma gangue local.

O longa foi filmado entre agosto e setembro de 2023 em Beberibe, no Ceará. Jupyra participou do processo de seleção de elenco com mais de 500 pessoas, passando por seis testes realizados virtual e presencialmente. 

“Desde o começo e até o último teste, senti que Karim tem uma abertura muito grande em relação ao elenco, à escuta, de jogar junto, estabelecer um vínculo de disponibilidade de mudança”, destaca a atriz.

“Ele consegue estabelecer esse vínculo de criação coletiva, conjunta, mais horizontalizada. Do processo inicial de leitura até o processo de filmagem, houve esse lugar muito preservado. Ele tem uma noção muito afiada e afinada de que o elenco é esse lugar que consegue fazer com que o filme ganhe uma camada mais profunda, crua”, segue.

“Imaginar meu corpo ali”

Se a experiência das filmagens do longa já é definida pela atriz como “um transe”, “uma realidade inimaginável”, a seleção da obra em Cannes foi ainda mais forte. “A gente entende a repercussão e projeção internacionais do Karim, mas ter a notícia de que esse filme feito no Ceará conseguiu concorrer à Palma de Ouro foi uma surpresa”, compartilha.

“Recebo a princípio com certo torpor, não consigo imaginar exatamente na hora o que representa isso tudo. Com o tempo, a gente vai entendendo a importância desse filme no festival, o único da América Latina, o primeiro do Ceará, com um elenco diverso, muitas pessoas pretas e periféricas no trabalho. São várias camadas que ele representa dentro do festival”
Jupyra Carvalho
atriz

Ao conseguir assimilar a participação da obra em Cannes, Jupyra passou a encarar, também, a possibilidade da própria participação no festival. “Pra mim, chega de forma mágica. É como se abrisse a possibilidade de imaginar meu corpo ali, algo impossível no meu imaginário e na construção da minha vida que tem todo um contexto de precariedade”, compartilha.

“Para além de me mover para um lugar geográfico, é um deslocamento também de possibilidade de existir de forma livre, potente e entender que o meu corpo consegue quebrar essas barreiras”, segue.

Presenças trans no audiovisual como potência

O texto de apresentação do financiamento destaca que a corrente em torno de Jupyra tem impactos além dos individuais. “Tornará possível ao coletivo em que ela pertence enquanto travesti, nordestina e periférica de acessar lugares inimagináveis e impossíveis”, sustenta a campanha.

“Esse contexto é meu, da minha vida, tem todas as especificidades que são próprias a mim, mas, pensando no coletivo, elas também estão em outros corpos e pessoas. Quando meu corpo conseguir chegar lá, recebendo apoio forte e sincero das pessoas, elas vão junto comigo”, confia Jupyra. “É uma grande flecha que foi atirada por muitas mãos”, metaforiza.

“Percebo essa felicidade compartilhada principalmente de corpos trans, que nessa sociedade são os mais embarreirados no sentido da circulação tanto de pensamento, criação, como de circulação em espaços, uso do banheiro, acessos”, segue.

Seja à frente ou atrás das câmeras, a artista defende a presença de pessoas trans e outros corpos dissidentes em produções como agregadoras de potência, como no caso de “Motel Destino”.

“Quanto mais diversa for a equipe, melhor para o contexto do filme, do trabalho, existe compreensão da equipe. Ainda assim, existem profissionais trabalhando pela primeira vez com um profissional trans. É importante pensar a potência dessas presenças como contribuição ao cenário audiovisual. É importante ter espaço de aprofundamento ao falar da presença de corpos trans no audiovisual, para que não fique apenas um lugar fantoche ou manequim”
Jupyra Carvalho
atriz

Estreias simbolizam “possibilidade de imaginar um futuro”

A confluência das duas importantes  estreias — a mundial de “Motel Destino” e a comercial no Brasil de “A Filha do Palhaço” — no mesmo mês é vista por Jupyra como um momento “simbólico”. 

“É simbólico para minha vida, não só para minha carreira enquanto atriz, que ainda está lutando para existir”, compreende. Apesar das experiências em teatro e audiovisual acumuladas, a artista lembra que ainda não consegue ter a atuação como “profissão primária”. “É um lugar difícil para conseguir me sustentar financeiramente”, aponta.

Ainda mais, ela compartilha, por ter feito, entre os projetos, testes de elenco para diversas produções e ser “continuamente recusada”. “Já vinha sendo recusada, aí veio ‘Motel Destino’. Depois, continuei a ser recusada, mas aí recebo a notícia de que ele está indo para Cannes”, conta.

“Esses dois filmes estrearem juntos, no mesmo mês, é uma possibilidade de imaginar um futuro em que eu faça isso da minha vida, arte. Só imaginar isso já me traz uma firmeza de continuar. Para mim, é certo que esses filmes vão me colocar em outro lugar de confiança em relação ao meu próprio trabalho”, acredita.

Colabore com Jupyra

  • Chave pix: jupyraa@gmail.com
  • Financiamento coletivo: no site Vakinha.com.br