O decreto municipal de Nova Olinda, cidade do Cariri cearense, não surpreende apenas pelo aspecto sanitário, pois desobrigar o uso de máscaras, ainda que apenas em locais públicos, contraria umas das mais básicas medidas de contenção do coronavírus. A medida contraria também um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) discutido exaustivamente no último ano e meio.
Essa decisão, aliás, apesar de muito lembrada, parece ser pouco conhecida de fato. Até mesmo porque ela é, não raro, citada como um impedimento a ações da União no contexto da pandemia, o que não é verdade.
Entenda o que o STF decidiu
No dia 15 de abril de 2020, o plenário do STF confirmou, por unanimidade, o entendimento de que as medidas adotadas pelo governo federal na Medida Provisória (MP) 926/2020 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastavam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios.
Em outras palavras, União, estados e municípios têm competência para tomar essas medidas que envolvem saúde pública.
A decisão de toda a corte foi um referendo à medida cautelar conferida no mês anterior pelo então ministro Marco Aurélio na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341. Aproveitando o tema, o ministro Edson Fachin propôs que o artigo 3º da Lei 13.979/2020 também fosse interpretado conforme a Constituição, para deixar claro que a União pode legislar sobre o assunto, mas que o exercício desta competência deve sempre resguardar a autonomia dos demais entes.
No entendimento de Fachin, a possibilidade de o chefe do Executivo Federal definir por decreto a essencialidade dos serviços públicos, sem observar a autonomia dos entes locais, afronta o princípio da separação dos poderes. Quanto a esse pronto, a maioria dos ministros concordou com a proposta. Não foi unânime, mas prevaleceu.
E o que é esse entendimento da lei "conforme a Constituição"?
Com relação a políticas públicas que envolvem a saúde, eis o que dizem os artigos 23 e 24 da Constituição:
- "Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(...)
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;" - "Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(...)
XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;"
Marco Aurélio Melo lembrou em seu voto que, apesar de não citar os municípios, o artigo 24 traz a este ente a capacidade de criar normas pois, "a teor do disposto no artigo 1º – todos sabemos –, integram a Federação".
Então o decreto de Nova Olinda tem validade?
Não. O entendimento é pela competência concorrente. Todos podem emitir normas sobre saúde pública. Contudo, quando há conflito, o que vale?
O que os ministros decidiram, ainda conforme a Constituição, é que decretos de governadores e de prefeitos que forem mais restritivos que as medidas do governo federal têm validade. Da mesma forma, decretos de prefeitos que forem mais restritivos que as medidas estaduais também têm validade.
Mais restritivos. Não o contrário. E, no Ceará, um decreto estadual exige o uso de máscaras.
Por isso surpreende a nota enviada ao Sistema Verdes Mares pela Secretaria Municipal da Saúde de Nova Olinda, na qual o órgão informou que "a decisão [de desobrigar o uso de máscara em locais abertos e sem aglomerações] foi tomada com base de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que delibera sobre a autonomia do município"
Na ementa (síntese) da ADI 6341, os ministros resumiram bem que o objetivo dos entes é sempre na busca por melhores ações em favor do direito à saúde.
Como a finalidade da atuação dos entes federativos é comum, a solução de conflitos sobre o exercício da competência deve pautar-se pela melhor realização do direito à saúde, amparada em evidências científicas e nas recomendações da Organização Mundial da Saúde.
É uma excelente notícia saber que 88,7% da população adulta de Nova Olinda está vacinada e que não há internações por Covid-19 há um mês no município. Mas em um Estado Democrático de Direito, há que se cumprir normas e decisões judiciais.