Da cruz ao X: quem manda no Estado?

A micro-história do conceito de Estado e seus conflitos

O sistema feudal, que dominou a Europa medieval, era um modelo descentralizado de poder no qual senhores feudais exerciam controle sobre suas terras e vassalos em troca de lealdade e serviços militares. Este sistema refletia uma sociedade agrária, na qual a economia e a política estavam localizadas em pequenos feudos, e a autoridade do rei era frequentemente limitada pela autonomia desses senhores.

No entanto, com o advento da centralização do poder nas mãos dos monarcas, o feudalismo começou a dar lugar ao que chamamos de Monarquia-Estado. Reis como Luís XIV da França exemplificam essa transição, afirmando que ele era o Estado — "L'État, c'est moi".

A igreja, embora tenha perdido parte de sua influência direta sobre o governo, frequentemente apoiava essas monarquias, que viam como defensoras da fé. A aliança entre coroa e cruzada era mutuamente benéfica: os monarcas garantiam a autoridade religiosa sobre seus súditos, enquanto a igreja legitimava o poder real.

A Cruz é a força do Estado: Igreja-Estado

Desde os primórdios da civilização, as religiões desempenharam um papel central na formação das sociedades humanas. A ideia de um poder divino orientando as leis e costumes foi fundamental para a coesão social em várias culturas.

Durante a Idade Média, essa fusão alcançou seu ápice na Europa cristã com o Sacro Império Romano-Germânico. A Igreja Católica, com sua estrutura hierárquica e influência moral, moldava as leis e o comportamento social, enquanto os monarcas consolidavam seu poder territorial. Esta aliança, porém, estava longe de ser harmoniosa.

O processo de separação entre Igreja e Estado começou a ganhar força com a ascensão das monarquias nacionais no final da Idade Média e início da Renascença. O ponto de ruptura mais notável ocorreu com a Reforma Protestante no século XVI, iniciada por Martinho Lutero na Alemanha. A divisão do cristianismo não só enfraqueceu a autoridade universal do Papa, como também deu margem para que os monarcas afirmassem seu controle sobre as igrejas locais. Um exemplo disso é o Ato de Supremacia de 1534 na Inglaterra, em que o rei Henrique VIII rompeu com Roma e se proclamou chefe da Igreja Anglicana.

O povo é a força do Estado: República-Estado 

A queda das monarquias absolutas e a ascensão das repúblicas marcaram uma nova era na constituição das nações. O Iluminismo do século XVIII trouxe novas ideias sobre direitos humanos, soberania popular e o contrato social, que desafiaram a autoridade divina dos reis. A Revolução Francesa de 1789 foi um marco desse movimento, ao abolir a monarquia e declarar a primeira república da França. A execução de Luís XVI simbolizou a transferência de poder dos reis para o povo.

No século XIX, as repúblicas e as monarquias constitucionais proliferaram, e o conceito de estado-nação tomou forma. Um bom exemplo é o do Brasil, que se tornou uma república após a queda de Dom Pedro II. A criação de constituições que definiam os direitos e deveres dos cidadãos e limitavam os poderes dos governantes tornou-se uma prática comum.

Os conflitos dessa era, como as Guerras Napoleônicas, a Guerra Civil Americana, e as duas Guerras Mundiais, foram em grande parte batalhas pela autodeterminação e pela formação de estados baseados em princípios republicanos. Entretanto, o ideal do estado-nação ainda enfrenta desafios.

O capital é a força do Estado: Empresa-Estado

No século XX, com o advento da globalização e da revolução tecnológica, assistimos ao surgimento de uma nova entidade de poder: a Empresa-Estado. Corporações multinacionais como Apple, Google e Amazon, com recursos financeiros e influência global comparáveis ou superiores a muitos países, começaram a desempenhar papeis que antes eram exclusivos dos estados.

Essas empresas controlam grandes volumes de dados pessoais, têm o poder de influenciar mercados financeiros e, em alguns casos, até moldar políticas governamentais. A ascensão do poder corporativo levanta questões éticas e políticas profundas, especialmente quando seus interesses entram em conflito com os das nações soberanas. Exemplos incluem o papel das empresas de tecnologia nas eleições, a evasão fiscal em grande escala e as práticas monopolistas.

Conflitos como o embate entre a União Europeia e empresas como Google e Amazon sobre questões de privacidade, monopólio e tributação ilustram os desafios que os estados enfrentam ao lidar com essas novas potências.

A maçã é mais forte que as repúblicas

O valor de mercado da Apple chegou ao patamar de 3 trilhões de dólares, segundo dados do FMI em 2022, e era inferior apenas ao PIB de seis nações do mundo. São elas:

- Estados Unidos: US$ 25,5 trilhões
- China: US$ 17,8 trilhões
- Japão: US$ 4,2 trilhões
- Alemanha: US$ 4,1 trilhões
- Índia: US$ 3,4 trilhões
- Reino Unido: US$ 3,1 trilhões

Quando comparamos a força do valor da Apple em relação ao Brasil, notamos uma distância considerável. Segundo dados do FMI de 2022, o Brasil tem um PIB de 2,04 trilhões de dólares. Dessa forma, outras duas empresas também são superiores ao nosso PIB. São elas:

1. Apple — US$ 3,08 trilhões
2. Microsoft — US$ 2,49 trilhões
3. Saudi Arabian Oil Co — US$ 2,09 trilhões

Ao avaliar os números, temos dados suficientes para entender que o mercado privado individual das gigantes tem poderio suficiente para influenciar a economia de uma nação. Obviamente, existem outros pontos que fazem a república ter a sua potência em relação às gigantes privadas. O povo, o poderio militar, o território, a educação, a cultura, o sentimento de pertencimento, entre muitos outros aspectos, são a base daquilo que o país-estado possui, que vai além dos dólares. 

Para as big techs, competir nesse âmbito exige cautela e um jogo de influência que tem nos canais de comunicação grande poderio, criando um grande conflito social que gera um embate entre a educação formal e as redes sociais, e como cada uma ganha força em relação à formação do cidadão. Nessa seara, empresas como Meta, Alphabet (Google, para os íntimos), Apple e Twitter, que virou “X” — mas fica difícil citar sem mencionar o nome original do produto por ser genérico demais — têm um papel crucial.

O X quer ser Estado (não só ele)

Elon Musk sabe muito bem a força do capital privado sobre os países-estado na sua configuração republicana. Musk também sabe que precisa ter canais de comunicação para gerar influência para suas marcas e metas de resultado, algo extremamente normal em qualquer gestão moderna. O X de Musk não faz algo muito diferente do que a Meta com seu Facebook, Instagram e WhatsApp. O X de Musk não faz algo muito diferente do que a Alphabet com seu Google, Gmail, Maps, YouTube e Android. O X de Musk não é o primeiro a ser acusado de usar suas plataformas para influenciar a sociedade por meio de notícias inverídicas, feitas por usuários que pagam às big techs pela disseminação de tais informações. Em resumo, estamos falando de um conflito de gestão da informação, que muitas empresas de comunicação, que vão além das fronteiras de sua nação, têm com o país na configuração de república representativa.

Abrimos o mês de setembro com um conflito Privado x República, que trouxe uma situação emblemática e de proporção grandiosa, quando a Suprema Corte Brasileira bloqueou o X em todo o Brasil. 

O caso de Elon Musk e sua empresa X exemplifica os desafios atuais das repúblicas e os interesses conflitantes com as grandes corporações. Desde que Musk assumiu o controle da plataforma, ela tem sido alvo de críticas e investigações em várias partes do mundo. Uma das principais preocupações gira em torno do papel do X na disseminação de fake news e no fomento ao discurso de ódio. A plataforma, que foi crucial na comunicação durante eventos como a Primavera Árabe e os movimentos sociais em diversos países, tornou-se um campo de batalha onde a liberdade de expressão se choca com a necessidade de regular conteúdos prejudiciais por parte dos países.

Na Inglaterra, o X enfrenta investigações por permitir a proliferação de conteúdos considerados nocivos e por falhar em moderar adequadamente a disseminação de fake news. O governo britânico tem pressionado a plataforma para adotar medidas mais rígidas, impondo regulamentações que poderiam limitar a autonomia do X em nome da proteção do público. As tensões aumentaram à medida que Musk, um defensor declarado da liberdade de expressão, se recusou a implementar certas recomendações de moderação, alegando que isso poderia comprometer o direito fundamental dos usuários de expressarem suas opiniões.

Na Europa, a situação é ainda mais complexa. A União Europeia tem liderado esforços para regulamentar as big techs, com a Lei de Serviços Digitais (DSA) impondo novas responsabilidades para plataformas como o X. A empresa de Musk está sendo monitorada de perto por sua conformidade com as novas regras, especialmente no que diz respeito à remoção de conteúdos ilegais e à transparência em seus algoritmos de recomendação. A recusa ou atraso em atender às exigências da DSA pode resultar em multas significativas ou até mesmo na suspensão de operações dentro da UE, marcando uma nova fronteira na batalha entre estados e corporações digitais.

No Brasil, a relação entre o X e o governo tem sido tensa, com a plataforma sendo acusada de permitir a disseminação de notícias falsas e discursos extremistas que influenciam o cenário político. A questão da regulação das big techs no Brasil ainda está em debate, com possíveis implicações legais que podem reverberar globalmente, refletindo um movimento cada vez maior de governos em busca de controle sobre o poder e a influência das gigantes tecnológicas.

À medida que essas tensões se intensificam, o futuro das relações entre estados e empresas-estado, como o X, permanece incerto, com o equilíbrio entre liberdade, segurança e soberania nacional sendo uma questão central na evolução das nações no século XXI.

A pergunta que fica é: por que somente o X tem sido o principal alvo de algo que as outras big techs também fazem?

Por fim, fica óbvio que estamos apenas no início do conflito de mais uma transição de influência e gestão do Estado. A tendência é que essa discussão e esses conflitos se ampliem ainda mais.