Quem tem medo de Paulo Freire?

Esse ano comemoramos o centenário de um dos intelectuais mais brilhantes do país, um professor e educador consagrado no mundo inteiro, um dos brasileiros mais universais: Paulo Reglus Neves Freire. Seu livro Pedagogia do Oprimido é a terceira obra mais citada no mundo, no campo das ciências humanas e sociais. Nascido na cidade do Recife, filho de um capitão da polícia militar do estado, passou sérias dificuldades e conheceu a fome quando da grave crise econômica do ano de 1929.

Com a ajuda econômica de dois irmãos mais velhos, que não terminaram os estudos para trabalhar, e de uma irmã professora do ensino fundamental, Paulo Freire forma-se em Direito, na Universidade do Recife. Um pensador cristão, partidário das mudanças educacionais propugnadas pela chamada Escola Nova, leitor do marxismo, mas também do existencialismo e do pragmatismo, nunca exerceu a profissão jurídica, preferindo dar aulas de língua portuguesa numa escola de segundo grau.

Em 1959 torna-se professor da Universidade Federal do Recife, com a tese Educação e atualidade brasileira, que seria seu primeiro livro publicado. Em 1961 assume o Departamento de Extensão Cultural da Universidade do Recife, realizando, nesse mesmo ano, as primeiras experiências no campo da educação popular, junto com sua equipe, o que levaria a elaboração de seu método de alfabetização de adultos, testado com sucesso numa experiência piloto, no ano de 1963, no município de Angicos, no estado do Rio Grande do Norte, onde alfabetizou em quarenta e cinco dias trezentos cortadores de cana-de-açúcar.

Esse seu feito talvez sirva para começarmos a entender o porquê de, nesses tristes tempos em que vive nosso país, Paulo Freire seja vítima de uma campanha sistemática de desqualificação e até de demonização.

Quem nunca abriu um de seus livros, lidos e debatidos nas principais universidades do mundo, como uma referência obrigatória no campo da filosofia da educação, se arvora a reduzir o seu pensamento a uma manifestação do comunismo, quando não uma fórmula para destruir as famílias, justo ele que construiu uma linda família, ao longo da vida.

As classes dominantes brasileiras, que patrocinaram o golpe civil-militar de 1964, que o prendeu e o obrigou a ir para o exílio, temem Paulo Freire por ele advogar que a educação deve ser um ato de formação cidadã, de formação da consciência por parte dos explorados e oprimidos. Aqueles que são opressores e exploradores temem Paulo Freire e, mais uma vez, estão por trás do golpe de 2016, que desembocou na eleição de um governo neofacista e neoliberal, cujos partidários tentaram até retirar dele o título de Patrono da Educação Brasileira, conferido em 2012.

Retirar os pobres da ignorância e da alienação é o grande pecado da pedagogia crítica, desenvolvida por Paulo Freire, não apenas em suas experiências no Brasil, mas em países como o Chile e as colônias africanas de língua portuguesa.

Quem explora e oprime não quer ver seus trabalhadores ter acesso a uma educação, que não se reduz ao mero letramento, mas que implica um conhecimento das condições históricas e sociais que são responsáveis por sua condição de classe, de raça, de gênero.

Paulo Freire propunha educar para a liberdade, o ato educativo como um ato de libertação não apenas da ignorância, mas das relações sociais de exploração e de opressão, das relações de desigualdade de direitos. Setores de nossas elites, ignorantes e obtusas, não podem gostar da educação e de quem a promove como um meio de ascensão e mudança social.

Quem quer a manutenção do status quo, quem quer a reprodução e a continuação dessa ordem social injusta e desigual teme e odeia Paulo Freire e tudo aquilo que ele fez e ensinou de maneira brilhante. Sua crítica a educação tecnicista, bancária, aquela que apenas visa formar mão de obra para servir ao crescimento do capital, a educação que hoje se quer militarizada, acrítica, o colocou na alça de mira daqueles que se beneficiam da ignorância, da pobreza e da alienação de boa parte de nossa população.

Para Paulo Freire a educação era uma arma de transformação social, de construção de um mundo mais justo e solidário. Sua utopia de base cristã, que sonha com um mundo mais fraterno e mais igualitário, apavora os cristãos de araque, os empresários das religiões, que fazem da exploração das carências e da fé das pessoas mais humildes fonte de enriquecimento e de poder político.

São eles que demonizam o pensador que nunca se mostrou simpatizante dos regimes totalitários, de esquerda ou de direita, por ser um amante da liberdade, que nunca foi favorável a violência como forma de transformação social. Paulo Freire foi um homem que acreditou no poder transformador das ideias, das palavras, da linguagem, da convivência fraterna com os mais pobres, da construção de laços de solidariedade e ajuda mútua entre os oprimidos.

Num país em que as classes dominantes sempre evitaram estender os benefícios da educação a toda a população, que sempre pensaram a educação como monopólio e privilégio dos seus integrantes, que sempre consideraram o investimento em educação um gasto a ser evitado, como as propostas em andamento no Congresso Nacional, o mais antipovo e antinacional que já foi eleito, de acabar com a obrigatoriedade de um percentual de gastos com a educação, Paulo Freire só pode ser temido e odiado.

Como a CPI da Covid-19 tem mostrado, a burguesia brasileira está interessada apenas em seu bolso, nos seus lucros astronômicos, mesmo que, para isso, tenha que enganar a

população e levá-la a morte, para que não pare de trabalhar e fazê-la mais rica. Essa elite que ainda apoia um governo que vive da desinformação, da mentira, da falsificação, adulteração e sigilo de dados, não pode sentir orgulho de um seu conterrâneo, que se dedicou a produzir conhecimento, a produzir consciências, a ensinar verdades incômodas e fornecer dados que deveriam ficar em segredo.

Sobretudo Paulo Freire dirigiu a sua vida em benefícios dos mais pobres e dos mais humildes, das classes trabalhadoras e isso fez dele persona non grata para setores das classes dominantes brasileiras que, de tão truculentas, são capazes de atropelar propositadamente alguém, só porque pensa politicamente diferente, como se viu no último sábado, na cidade que viu Paulo Freire nascer.

Uma elite capaz de matar lideranças políticas que se colocam na denuncia e na oposição a seus privilégios e as suas ações arbitrárias, não podem gostar de um educador que pregou a paz e a esperança, que pregou o poder transformador do ensino, da aprendizagem, do conhecimento, da ação prática de transformação cotidiana.

Para uma burguesia que não tem o menor apreço pelos valores democráticos, que usa a democracia em benefício próprio e dela abre mão sempre que lhe é mais interessante e lucrativo, Paulo Freire, um democrata convicto, só pode ser uma ameaça. Ele propunha fazer do gesto educativo uma prática de ensino da democracia, onde o educador e o educando não são colocados numa relação hierárquica, em que um sabe e o outro é desprovido de saber e apenas decora ou reproduz o que o professor diz ou escreve.

Mas o educador aprende com o educando, respeita e parte de seu saber para construir juntos um outro conhecimento. Uma prática educativa que implica engajamento existencial, em que a mudança não se dá apenas na consciência do educando, mas também na do educador, desafiado a sair de seu lugar e posição privilegiada e de conforto para ir partilhar e conviver com a realidade social, cultural e política de quem ele educa. Um ato pedagógico do qual os dois saem transformados e mais sábios.

Paulo Freire é mesmo ameaçador e mete medo em quem não quer abandonar seus postos de privilégio, não quer ver mudanças verdadeiras a sua volta, que se incomodam com o negro, o pobre, o indígena, a filha da empregada na Universidade, que temem a concorrência com aqueles que ascendem socialmente através da educação. Sim a educação, essa arma perigosa e letal para a ignorância e a desinformação, para quem quer apenas oferecer rifles e fuzis como solução para os problemas sociais.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.