Pobreza, ausência do Estado, violência e criminalidade

Coincidentemente, na semana em que o governo Lula lançou o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci II), visando modificar a visão e a forma de abordagem da questão da segurança pública, da criminalidade, o estado do Rio Grande do Norte vive uma grave crise nessa área, com a facção criminosa chamada Sindicato do Crime, que tem o controle sobre as atividades ligadas ao tráfico de drogas, perpetrando vários ataques a bens públicos (veículos, depósitos, repartições públicas), bem como a veículos, comércios e residências particulares, na tentativa de forçar o governo do estado, chefiado por Fátima Bezerra, a aceitar uma lista de reivindicações, que se referem as condições e as regras de funcionamento do sistema prisional.

Mas, na verdade, os ataques orquestrados a partir dos próprios presídios, onde algumas das lideranças da organização criminosa estão presas, inclusive em outros estados do Nordeste, ao mesmo tempo que é uma demonstração de força e organização, é um indício de que a política de combate ao tráfico de drogas realizada pelo governo está incomodando, notadamente no que se refere à venda de drogas no interior das próprias instituições prisionais, tanto é que os ataques se consumaram após o Sindicato do Crime estabelecer uma trégua na sua disputa com o PCC, facção rival, que tenta dominar o comércio de entorpecentes no estado e que vem participando, também, das ações de vandalismo e violência, com a provocação de incêndios e a realização de disparos de armas de fogo contra os alvos escolhidos, além de saques e assassinatos de comerciantes e policiais.

As ações espetaculares, com os próprios autores filmando o que fazem para disponibilizarem nas redes sociais, que estão sendo fartamente utilizadas para espalhar e infundir o clima de terror e caos, que levou a paralização de um grande número de atividades (escolas, universidades, repartições públicas, atividades comerciais, postos de saúde e assistência social e, principalmente, o transporte coletivo, alvo preferencial das ações de vandalismo), geram imagens de significado bastante ambíguo, à medida que levam à repulsa de determinada parcela da sociedade, reforçando alguns preconceitos e estereótipos em torno dos pobres, dos pretos e dos pardos, dos bandidos e, ao mesmo tempo, causam atração e fascínio em outra parcela da sociedade, notadamente entre os adolescentes carentes e periféricos, que podem ser seduzidos pela demonstração de poder encarnado no aparato bélico que é exibido, na retórica de confronto com as forças de segurança (que possuem baixa popularidade em amplos setores da sociedade) e com o governo, na exibição de um modelo de masculinidade, assentado na agressividade, na competição e na violência.

O mais contraditório é que a cobertura dos atos criminosos feita pelos próprios perpetradores não foge do padrão de cobertura realizado pela mídia tradicional e que vem sendo acompanhada pela abordagem que o governo estado vem fazendo dos acontecimentos. Toda a cobertura se centra em narrar os eventos que estão ocorrendo e suas causas ou objetivos imediatos, sem que nenhum dos atores envolvidos se perguntem pelas motivações estruturais, de longo prazo, que são responsáveis por termos chegado à situação atual.

Tanto aqueles que realizam as ações e as divulgam, quanto aqueles que as combatem ou delas fazem a narrativa jornalística, tendem a se centrar nas ações individuais ou de grupo que estão sendo efetivadas, sem se inquirir sobre as condições econômicas, sociais, políticas e culturais que engendraram aqueles indivíduos e aqueles grupos.

Os criminosos, muito influenciados pelas narrativas cinematográficas ou televisivas, se mostram como justiceiros, como anti-heróis, como corajosos machos a desafiar, individualmente ou em grupo, a ordem vigente ou como vítimas de um sistema que reduzem às forças de segurança, ao sistema prisional ou as autoridades. A mídia, notadamente os programas policiais facistoides, reduz a criminalidade a uma questão individual, moral, quando não retomam as ideias defendidas pelo criminalista italiano, do século XIX, Césare Lombroso, que vê o bandido como alguém que já traz uma tendência criminosa de nascença, que teria uma natureza predisposta a delinquir, sendo naturalmente uma encarnação do mal.

O governo do estado, um governo de esquerda, atônito com os acontecimentos e não tendo, como é comum, uma política alternativa de segurança pública, temendo por sua popularidade, acossado pela oposição de extrema-direita, encarnada numa figura como a do miliciano, do “matador de bandido”, Wendel Fagner Cortez de Almeida, o Wendel Lagartixa que, réu confesso, mesmo assim foi o mais votado nas últimas eleições para a Assembleia Legislativa, também esquece de abordar as causas estruturais da criminalidade, esquece de fazer uma crítica à própria estratégia de repressão ao tráfico de drogas, fracassada e falida em todo o mundo, para responsabilizar apenas os indivíduos ou a facção pela violência e pela criminalidade.

A primeira pergunta a se fazer é por que o crime organizado e, particularmente, o tráfico de drogas encontra terreno fértil nas comunidades carentes, nas favelas, nas periferias das cidades? Essa realidade deixa claro que há uma relação entre pobreza, miséria e criminalidade. Mas dessa constatação, que parece até óbvia, pelo menos duas leituras podem ser feitas: uma que culpa os pobres pela própria pobreza (por serem preguiçosos, vagabundos, não gostarem de trabalhar, por serem viciosos) e que vê o pobre como alguém naturalmente inclinado ao crime.

Essa é a leitura, por exemplo, que o deputado de extrema-direita, Eduardo Bolsonaro, apresentou em pronunciamento na Câmara dos Deputados, ao comentar o lançamento do Pronaci II e uma visita que o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, fez a comunidade de favelas da Maré, na cidade do Rio de Janeiro.

Para o filho de Jair Bolsonaro, a fato de o Ministro ter sido recebido na comunidade, para ouvir, em reunião, líderes de várias comunidades cariocas sobre a questão da segurança pública, o fato dele ter entrado na comunidade com apenas dois carros de segurança, de não ter sido recebido a bala, demonstraria que ele e, por extensão, o presidente Lula, eram defensores de bandidos e aliados do crime organizado.

Esse brilhante raciocínio parte da criminalização de todos os moradores das comunidades, da criminalização dos pobres e coerente com a visão de segurança pública defendida pela extrema-direita, perfeitamente encarnada pelo governo de Cláudio Castro, no Rio de Janeiro, política baseada exclusivamente em repressão armada, que penaliza tanto os moradores, permanentemente expostos a confrontos letais entre policiais, traficantes e milicianos, quando não a justiçamentos por “engano”, balas perdidas e assassinatos a sangue frio de inocentes por serem pretos e pobres e, portanto, no imaginário dessa gente “bandido” e os próprios policiais, permanentemente colocados em situação de muita tensão e stress, o que favorece as ações desastradas e de violência indiscriminada.

A segunda leitura que pode ser feita é que a pobreza está na raiz da violência e da criminalidade, que a culpa do crime não é, necessariamente, do pobre, individualmente, mas da miséria como elemento estrutural e sistêmico. A pobreza não leva obrigatoriamente alguém ao crime, mas o favorece intensamente. E a pergunta seguinte a ser feita é, quais as causas da pobreza, das enormes desigualdades sociais existentes em nossa sociedade?

Pergunta que aqueles que representam a burguesia, o capital, que defendem o capitalismo e sua tendência a concentrar riqueza e gerar exclusão e miséria não estão interessados em fazer. É mais fácil culpar o criminoso pelo crime (afinal um princípio da justiça liberal é a individuação da pena) do que investigar quais as características da ordem social que formou esse indivíduo. Atribuir uma maldade intrínseca, de nascença, a alguém, ajuda a escamotear o fato de que nenhum bebê humano nasce bom ou mal, sequer nasce humano, é um bichinho que irá se humanizar no interior de uma dada sociedade e uma dada cultura. Se a uma criança não se oferece oportunidades, se ela não pode cultivar projetos, esperanças, expectativas de ter uma vida melhor, o que esperar dela, como a livrar da sedução do ganho fácil, da riqueza imediata, oferecida pelo traficante da esquina.

E é aí que entra o ator, muitas vezes esquecido, nesse debate, que é o Estado. O Pronaci é um programa inovador na área da segurança pública porque afirma, por um lado, que as pessoas pobres, que as pessoas pretas, que as mulheres, que todos aqueles mais vulneráveis (velhos, crianças, homossexuais, transexuais, indígenas) devem receber atenção especial, devem ser tratados como cidadãos, ou seja, devem ser incluídos nas políticas públicas e, por outro, e o mais importante, o Estado não deve se fazer presente nas comunidades apenas em situações de emergência na área da segurança pública, como se vê agora, no Rio Grande do Norte, mas ele deve se fazer presente na vida dos mais pobres, todos os dias (esse foi o sentido da visita do Ministro a Maré), o Estado não deve se fazer presente somente através da repressão, da violência, das ações policiais, mas ele deve estar presente, permanentemente, dando àquelas pessoas pobres outras oportunidades diferentes e alternativas as oferecidas pelo mundo do crime.

O Estado deve sim ir sempre às favelas, às periferias, às comunidades carentes, oferecer alternativas de emprego, de renda, oportunidades no campo da educação (principalmente a educação de tempo integral, afastando as crianças da influência das atividades criminosas), da cultura, do lazer, oferecendo formação ética e estética, que permitirão às crianças formularem projetos de vida, ter esperanças e expectativas, que hoje ficam restritas a ser o jogador de futebol famoso ou o chefão criminoso do lugar.

O Estado deve estar presente com políticas de saúde e de bem-estar social, com políticas no campo do esporte, das artes, para que as crianças e, também os adultos, possam ter visões de futuro e não ficarem apenas atoladas em um presente de aflições e carências.

É preciso que nas próprias comunidades sejam formadas lideranças positivas, políticas, comunitárias (como as que o Ministro foi visitar) que concorram com as lideranças negativas, que ofereçam outros exemplos de empoderamento e de ascensão social (para isso é preciso que nossas elites não se incomodem com qualquer mudança de status quo e não matem lideranças populares como Marielle Franco).

É preciso políticas públicas de combate ao racismo estrutural, notadamente quando se trata da formação dos agentes da área da segurança pública, que precisa ser completamente reformulada (o Pronaci restabelece a oferta de bolsas de formação para os policiais, resta saber que tipo de formação será dada).

É preciso que deixemos de ter um olhar superficial e imediatista, um olhar que individualiza a criminalidade e a própria maldade, e pensar que os criminosos, as pessoas más, até monstruosas, desequilibradas mental e psicologicamente, têm uma história que, se não as absolvem, as explicam. Podemos com elas aprender a como evitar que outras sigam o mesmo caminho.