O que poderíamos considerar uma experiência limite?

Nós, seres humanos, nos destacamos em relação aos demais animais, dentre outros aspectos, por sermos seres que somos capazes de experiência. Mas, o que constitui uma experiência? Nós, humanos, somos capazes de reter, em nossas carnes, em nossa mente, na nossa subjetividade, rastros, traços, fragmentos, trechos, cenas daquilo que nos aconteceu, daquilo que se passou, daquilo que nos tocou, nos atingiu, daquilo que ocorreu conosco ou daquilo de que ficamos sabendo, daquilo que vemos e ouvimos, daquilo que, mesmo não nos atingindo diretamente, nos disse respeito de alguma forma, nos impactou, nos chamou a atenção, se tornou algo marcante para nós. 

A experiência é possível porque nós, da espécie humana, somos dotados da faculdade da memória, uma memória bastante desenvolvida, mais pronunciada do que na maioria das outras espécies animais. Nós somos dotados da capacidade de retenção e registro daquilo que nos atinge, que nos acontece, através de várias modalidades de memória: desde a memória sensorial, fundamental para que percebamos o mundo à nossa volta. 

Aquilo que nomeamos de percepção seria impossível sem essa capacidade que nossas carnes têm de reter parte dos fenômenos, daquilo que atinge nossos sentidos (a visão, a audição, o tato, o paladar e o olfato). Essas experiências guardadas por nossas carnes são responsáveis pelas reações que chamamos de instintivas, pois o aprendizado que fazemos é mobilizado instantaneamente pelo nosso corpo (que é formado por essas experiências), para se defender ou responder ao mesmo estímulo que um dia experimentou e guardou: a criança que põe o dedo na tomada e leva um choque memoriza em seu corpo essa experiência desagradável e reagirá cada vez que seu dedo se aproximar novamente do perigo.

Somos seres da experiência porque temos memória consciente e inconsciente, voluntária e involuntária daquilo que ocorreu conosco ou com o mundo onde vivemos. Tanto na consciência, quanto no inconsciente, retemos aquilo que nos pareceu mais significativo, mais importante, mais central em cada coisa que vivenciamos. Não somos capazes de reter tudo que nos acontece, até porque não somos capazes de perceber e de registrar a enormidade de coisas que se passam ao nosso redor. 

Nossa atenção se concentra em algumas coisas, nós focalizamos, enquadramos, prestamos atenção em uma parte de um presente muito mais complexo. Nós só lembraremos conscientemente das experiências em que colocamos o foco, em que concentramos nossa atenção, nas que, de certa forma, investimos nossa memória. Isso não impede que nosso inconsciente esteja recebendo daquele momento, daquele acontecimento, outros estímulos, que no nosso inconsciente outros aspectos daquela cena estejam sendo registrados. Portanto, o que chamamos de experiência é a parte daquilo que nos ocorre que registramos e, com os quais, aprendemos alguma coisa. 

Ou seja, chamamos de experiência primeiro aquilo que conseguimos apreender e em segundo lugar aquilo com o qual fazemos um aprendizado, aquilo que nos ensinou, nos educou, nos forneceu informações, saberes e sabedoria para agir e reagir diante dos acontecimentos da vida.

A experiência nos prepara para o caráter incerto e surpreendente dos fatos da vida e da história. Muitos historiadores, como o inglês Edward Palmer Thompson, valorizaram e valorizam o que chamam de experiência, justamente, porque ela garantiria uma certa regularidade, continuidade, coerência e previsibilidade a vida de dados grupos sociais, notadamente daqueles que seriam menos inovadores, aqueles que se regeriam pelo costume, pela tradição, pela repetição, pela semelhança, pela identidade. As experiências coletivas desses grupos permitiriam aos historiadores recuperarem, assim como fazem os antropólogos, padrões de comportamento, normas, códigos, regras que tenderiam a organizar a vida coletiva, tendo elas nascido das experiências, da maturação, no tempo, de formas de agir, de se comportar, até de se revoltar, se sublevar, se revoltar. 

A chamada cultura popular seria produto da transmissão dessas experiências, da passagem de uma geração a outra dos saberes e das manhas e artimanhas aprendidas ao longo do tempo, o que daria certa estabilidade e caráter conservador a esses grupos, que obedeceriam a preceitos e realizariam ações que se tornariam repetitivas e ritualizadas, à medida que se mostrariam efetivas e capazes de levar a certos resultados, a uma certa regularidade, em vidas marcadas pela precariedade e incerteza. Tendemos todos a ver positivamente a experiência, embora, cada vez mais, a sociedade burguesa, capitalista tenha valorizado a novidade, o moderno, o criativo, o desenvolvimento, o progresso, aquilo para o qual as experiências contam cada vez menos.

Mas, afinal, o que poderíamos considerar uma experiência limite? Não existiria nessa expressão uma contradição interna? Se costumamos pensar que a experiência é algo que apreendemos e aprendemos e que ela fica, permanece e se prolonga no tempo e com o tempo, como combinar a ideia de experiência com a ideia de limite? Se a experiência seria algo que permanece indefinidamente ela não poderia ter ou ser limite. Mas a expressão existe e, portanto, deve haver algo que ela nomeia, senão não teria existência. Costumamos nomear de experiência limite aquele tipo de experiência que se constitui ou se constituirá num corte, numa ruptura, implicará a realização de mudanças em uma dada forma de viver. 

As experiências limites seriam aquelas em que uma pessoa, um grupo ou uma sociedade inteira, experimentaram alguma coisa, passaram por alguma coisa, vivenciaram algo que as transformaram, da qual não saíram os mesmos, na qual sofreram mudanças irreversíveis. As experiências limites seriam, justamente, aquelas em que uma pessoa ou uma sociedade foram levadas a seus limites, foram testadas, submetidas a acontecimentos, a experiências, a fatos que as levaram a sair de tal forma modificadas que não teriam como ser como eram antes, nunca mais poderiam se apresentar e se comportar da mesma forma. 

A experiência limite é aquela em que se vive algo que faz com que se ultrapasse limites que definiam como a pessoa ou grupo eram. Ela é um ponto sem volta, em que se foi atirado para longe e para fora de si mesmo, em que se foi desafiado e levado a testar aquilo que antes eram seus limites, desde físicos até emocionais e afetivos.

A experiência limite tem um parentesco com a morte e, muitas vezes, é a proximidade do ter morrido, o ter visto a cara da morte viva, como Cazuza viu, que constitui essa experiência da qual você sai modificado, diferente, outro, para sempre. O ter visto a morte de perto, o ter visto a vida, sua vida, como que de fora e em retrospectiva, o ter se observado como se fosse já um outro, aquele que foi e viveu o que você viveu, deixa marcas e se constitui em um novo marco a partir do qual o viver já não será o mesmo para você. 

A experiência limite é aquela que, sobretudo, te desperta a consciência de teus próprios limites, da finitude da vida e das coisas, é aquela que te mostra o valor da existência e, ao mesmo tempo, sua fragilidade. A experiência é limite, pois, ao passares por ela, ao atravessares o seu umbral, sairás outra pessoa, sairás mudado, tanto física, quanto subjetivamente. 

A experiência que testa os teus limites físicos, mentais e emocionais, que te faz sair modificado em teu corpo (com sequelas, com cicatrizes, mutilado, paralítico, tetraplégico), em tua mente (mudança de formas de pensar, de ver a vida, de posições diante da sociedade), em tua subjetividade (amando e valorizando outras pessoas e coisas, sentindo diferente e o que nunca sentiu antes, ressentido, rancoroso, vivendo da autopiedade), é a experiência limite. 

Essa experiência que, sobretudo, afirma o devir como realidade da vida, o fluxo imparável e sem qualquer lógica imanente do viver, a incerteza e a precariedade como condição mesmo do vivo, a morte como uma possibilidade a nos espreitar a cada dia. Portanto, ao viver uma experiência limite, ao sair do outro lado da linha, valorize ainda mais cada dia de vida, valorize cada momento do viver, cada amizade, cada amor, cada ocasião de alegria e felicidade, cada contribuição que você poder fazer e deixar para a sociedade em que vives. 

Fazer dos próprios limites que a experiência limite deixou motivo de superação e de afirmação do viver com alegria. Escrever esse artigo, após sobreviver a uma experiência limite, é, para mim, afirmar que ainda darei mais importância a cada oportunidade que tenha de afirmar a vida e o estar vivo no ato de escrever, de pensar, de falar, de contribuir para que o Brasil também ultrapasse essa experiência limite, que vivencia nesse momento: a experiência do mergulho na escuridão do fascismo, do autoritarismo, na sombria experiência da necropolítica, da devastação ambiental, do genocídio de negros e indígenas, da fome e da doença física e mental generalizada, do desemprego e da desesperança, da ignorância e do negacionismo, do ataque a direitos e conquistas dos trabalhadores, do abandono da ciência e da educação, da destruição das empresas brasileiras, do empobrecimento dos servidores e desmantelamento dos serviços públicos. Temos que sair melhores e mais saudáveis dessa experiência limite a que o país foi levado por um golpe de Estado e pelo uso político do sistema de Justiça.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.