Nesse ano está se comemorando o centenário da Semana de Arte Moderna, evento que ocorreu na cidade de São Paulo, no Teatro Municipal, entre os dias 13 e 18 de fevereiro de 1922. Esse evento quase sempre é tomado como o marco de fundação de uma arte e de uma literatura brasileiras, como sendo o evento que significou a chegada da estética modernista entre nós. Toda vez que vai se contar a história da cultura brasileira, de suas artes e de sua literatura, a Semana é tomada como um marco inquestionável e como um acontecimento fundante.
Essa centralidade dada ao evento paulistano, na história da cultura brasileira e, nele, a proeminência atribuída ao grupo de artistas e intelectuais paulistas, se deve a narrativas sobre o evento construídas, posteriormente, por importantes e influentes intelectuais e artistas de São Paulo, participantes ou admiradores daquele evento cultural. A mais importante delas é, sem dúvida, a série de artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo, quando da comemoração dos vinte anos daquele evento, por parte de um de seus participantes mais proeminentes e que havia se tornado, nos anos que se seguiram àquele acontecimento, uma das mais importantes lideranças intelectuais do país: Mário de Andrade.
Nessa série de artigos, reunidos no livro O movimento modernista, publicado no mesmo ano, Mário de Andrade constrói essa centralidade da Semana de Arte Moderna nas transformações que se deram na cultura brasileira, desde então, e sem nenhuma modéstia, a proeminência do grupo paulista no então chamado movimento modernista (quando da realização da Semana o evento foi nomeado, muitas vezes de forma pejorativa, de futurista).
Essa centralidade foi reafirmada e tornada canônica na narrativa da história da literatura brasileira pelo importante intelectual paulista Antônio Cândido, notadamente em sua obra clássica Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, dividida em dois volumes, um publicado em 1964 e o outro em 1969. Outro intelectual paulista que foi importante para a reafirmação dessa centralidade da Semana na própria história do país, foi o historiador paulista Sérgio Buarque de Holanda, que chegou, inclusive, a estar presente naqueles dias de agitação cultural na capital de seu estado e que, ao mudar-se para a cidade do Rio de Janeiro, foi nomeado por Mário de Andrade, representante da revista modernista Klaxon, na capital do país.
Essa narrativa vitoriosa silenciava sobre dois aspectos, ou seja, produzia dois silêncios: sobre a participação numérica e artisticamente importante de artistas e intelectuais de outros estados do país, na Semana, e sobre a existência de outras movimentações modernistas, sobre a recepção do modernismo em outras cidades do país, no mesmo momento que isso ocorria na capital paulista.
No caso do Nordeste, podemos dizer que um espaço pensado como espaço da tradição seria impensável sem o contraponto da modernidade que emergia. Contraditoriamente, o chamado Movimento Regionalista e Tradicionalista do Recife, encabeçado por Gilberto Freyre, teve uma importância decisiva para a elaboração da ideia de Nordeste. Foi o Centro Regionalista do Nordeste, fundado em 1924, por Freyre, reunindo intelectuais e artistas, que capitaneou esse movimento intelectual, artístico e político, que foi decisivo para que o conceito Nordeste, inicialmente um mero recorte espacial entre norte e leste, se transformasse numa sofisticada elaboração identitária regional.
A cidade do Recife, uma das três maiores cidades do país, no início do século XX, um grande porto exportador e importador, uma cidade cosmopolita, cujas elites se deslocavam, com certa regularidade, para a Europa, não podia desconhecer as novidades estéticas trazidas pelas escolas modernistas europeias. O próprio Freyre, quando inicia sua militância regionalista e tradicionalista, havia acabado de chegar de uma estadia de cinco anos nos Estados Unidos, entre 1918 e 1923, onde cursou seus estudos universitários e de pós-graduação e de uma viagem a Europa, onde teve oportunidade de conhecer grandes nomes das artes modernistas.
Ao chegar da Europa, embora contasse com apenas 23 anos, Freyre se torna uma liderança intelectual na cidade do Recife e um crítico de primeira hora do modernismo paulista, anunciado e propagandeado na cidade, com entusiasmo, por um jovem intelectual, um estudante da Faculdade de Direito, que em uma viagem que fizera, em 1922, ao Rio de Janeiro, para participar do Congresso Internacional de Estudantes, evento que fazia parte das comemorações do centenário da independência, tivera oportunidade de se deslocar até a cidade de São Paulo, onde veio a conhecer o grupo modernista: Joaquim Inojosa. Ele que se dispusera a ser um representante do movimento paulista no Recife e no Nordeste, que logo funda uma revista, a Mauriceia, em 1924, e publica uma famosa plaquete intitulada A arte moderna, nesse mesmo ano, tornando-se o principal adversário de Freyre na cidade.
Giberto Freyre não recusava a forma moderna, em seus artigos, escritos para o jornal Diário de Pernambuco, sobre questões estéticas, ele criticava, sobretudo, o conteúdo das obras, as temáticas tratadas pelos paulistas, por considerá-las cosmopolitas e estrangeiradas. Nos conselhos que dava sobre como deveria ser a pintura ou a escultura brasileiras, qual deveriam ser os temas de nossa literatura, ele fazia a defesa do que chamava de temas tradicionais e regionais: a natureza tropical, a civilização do açúcar, as cidades e as cores coloniais, os tipos populares, a alimentação tradicional, etc.
Com razão, ele alegava que São Paulo não tinha introduzido o modernismo entre nós, para isso se valia da trajetória dos irmãos Rego Monteiro (Fedora e Vicente), que ainda nos anos dez, ao se deslocarem para Paris, para continuarem uma formação iniciada na Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro, passaram a produzir obras de fatura cubista e surrealista.
Tendo ficado hospedado na casa de Vicente do Rego Monteiro, quando de sua estada em Paris, tendo através dele conhecido grandes figuras do modernismo, como Picasso, Braque, Miró, Gilberto Freyre vai defender o pioneirismo do Recife e, por extensão, do Nordeste na adesão a estética modernista. Ele vai lembrar que o mais novo dos Rego Monteiro, Joaquim do Rêgo Monteiro, que foi a Europa para tratar de uma tuberculose, também teria se tornado um importante artista modernista, mesmo tendo morrido prematuramente.
No texto que escreve já próximo a sua morte, em 1976, intitulado Movimento regionalista e tradicionalista, a seu modo modernista, Freyre destaca a participação de Vicente do Rego Monteiro, na Semana de Arte Moderna, onde expôs oito quadros, participação completamente silenciada pela narrativa oficial sobre aquele evento, que silencia também, ou pouco dá destaque, a participação dos artistas cariocas e ao fato que é um intelectual carioca, Graça Aranha, que faz a conferência de abertura do evento.
Freyre lembra ainda que foi no Recife que se realizou a primeira exposição de arte moderna de toda a América do Sul, com a curadoria de Vicente do Rego Monteiro, que conseguiu trazer para o Brasil quadros dos grandes nomes da pintura moderna.
A narrativa vencedora sobre a Semana de Arte Moderna reforça a centralidade de São Paulo na história do Brasil, do século XX. À medida que aquele estado se tornara hegemônico, do ponto de vista econômico e do ponto de vista político, no país, ele vai também buscar se tornar hegemônico do ponto de vista cultural e intelectual. A fundação da Universidade de São Paulo, nos anos trinta, quando da derrota paulista para o governo Vargas, faz parte desse projeto das elites paulistas de retirarem do Rio de Janeiro, a centralidade cultural e intelectual do país.
Não é mera coincidência que serão os intelectuais ligados a USP que reproduzirão e reafirmarão essa centralidade do modernismo paulista na cultura brasileira, obscurecendo o fato de que a recepção do moderno se deu, entre nós, em vários lugares e com particularidades locais, que precisam ser conhecidas. Cidades como Belém (vivendo o apogeu da economia da borracha, no início do século XX), Recife, Salvador e Rio de Janeiro, três grandes portos, com contatos frequentes com o exterior e Porto Alegre, com contatos com as capitais do rio da Prata, não podiam estar de fora da circulação das novidades no campo das artes e da cultura.
Como se pode explicar que, nos anos trinta, serão os escritores nordestinos, aqueles que Oswald de Andrade apodou de búfalos do Norte, que se tornarão os maiores nomes da literatura brasileira de fatura modernista? Muitos deles conviveram, no início dos anos trinta, na cidade de Maceió, o que também pouco se sabe, onde puderam não apenas partilhar as ideias estéticas advindas não apenas do modernismo paulista, mas também da movimentação regionalista e tradicionalista do Recife. José Lins do Rego, grande amigo de Freyre, seu discípulo quanto a visão da história do Brasil e quanto a estética regional, teve oportunidade de conviver, em Maceió, com Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Ledo Ivo, Jorge de Lima, todos vivendo naquela cidade, onde iniciaram suas vidas de escritores.
Temos de aproveitar esse centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, não apenas para celebrá-la, mas também para problematizar a narrativa consagrada que a colocou como o ponto de partida da modernidade entre nós, versão que visava dar a São Paulo a primazia do moderno, de colocar a triunfante burguesia paulista também no centro da história da cultura brasileira, subalternizando os demais espaços, tidos como atrasados.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.