José Xavier Cortez: editor, livreiro, educador, um cidadão brasileiro

Em tempos de tantas perdas, de tantas mortes, de tantas partidas que deixam a sociedade e a cultura brasileiras mais pobres, mais debilitadas, eis que na última sexta-feira, dia 24 de setembro, nos deixou, vítima de um câncer, José Xavier Cortez, o fundador e a alma da Cortez Editora e da livraria Cortez. Um nordestino que, como tantos, partiu em busca de uma vida melhor e que construiu uma trajetória de sucesso na cidade de São Paulo, da qual se tornou filho honorário.

O Cortez, como todos nós que tivemos a sorte de conhecê-lo o chamava, nasceu no município de Currais Novos, no Rio Grande do Norte, no ano de 1937, de pais agricultores, plantadores de algodão e criadores de gado. Passou boa parte de sua infância e adolescência entre o Sítio Santa Rita e o povoado de São Sebastião (antigo Mulungu), sonhando em ser caminhoneiro (muitas vezes dirigia, pelas estradas, um caminhão imaginário, tendo como volante o seu chapéu de couro), sanfoneiro (tornou-se, já em São Paulo, um exímio dançarino de forró, que frequentava religiosamente todo fim de semana, após aparar o cabelo e a barba, no salão de cabelereiro) e professor, já que seus pais sempre valorizavam a educação e se esforçaram para que os filhos estudassem. Dividia seu tempo entre plantar e colher algodão e estudar.

Aos dezessete anos migra para o Sul, onde trabalha como garimpeiro. Aos dezoito anos ingressa na Marinha, terminando por se envolver na chamada Revolta dos Marinheiros, episódio ocorrido no dia 25 de março de 1964, às vésperas do golpe civil-militar de 1964, quando os marinheiros reunidos no Sindicato dos Metalúrgicos, para comemorar o segundo aniversário da Associação dos Marinheiro e Fuzileiros, resistem a ordem de prisão emitida pelo Ministro da Marinha, Silvio Mota.

Preso, julgado e libertado, o Cortez resolve abandonar o Rio de Janeiro e ir para a cidade de São Paulo, onde chega no ano de 1965. Vai trabalhar de lavador de carros num estacionamento na rua Asdrubal Nascimento, tornando-se, depois, manobrista, ao aprender a dirigir. Em 1966, ingressa na PUC para cursar economia e percebe a dificuldade que os colegas tinham de encontrar certos livros. Como morava numa casa de madeira próxima a editora Atlas, começou a conseguir os livros para os colegas em troca de uma comissão. Com o apoio do Diretório Acadêmico termina por conseguir autorização da direção da Universidade para instalar uma banca de venda de livros no pátio da faculdade. 

Em 1968, no mesmo ano em que se casa com Portira Beserra, com quem teve três filhas (Maria Regina, Miriam e Márcia), em sociedade com Virgílio da Silva Fagá e Orozimbo José de Moraes, funda a Livraria Cortez & Moraes ainda funcionando nas dependências da PUC, sendo depois transferida para um prédio na Rua Kurt Nimuendaju, nas imediações da universidade.

Em janeiro de 1980, desfeita a sociedade, torna-se o único proprietário da que passa a se chamar Cortez Editora, que surgira da impressão, ainda como uma apostilha, de um verdadeiro best-seller acadêmico, o livro do professor Antônio Joaquim Severino, Metodologia do Trabalho Científico. Em 1998, a livraria e editora foram transferidas para o prédio da esquina entre as ruas Bartira e Monte Alegre, no bairro das Perdizes, bem ao lado da PUC, universidade que teve uma importância decisiva em sua vida, na sua formação como um homem politizado, com consciência social, preocupado com os destinos do país, voltado para as causas sociais, amante da educação e da cultura, amante dos livros e da literatura.

Como espaço de resistência à ditadura, a PUC proporcionou a Cortez a oportunidade de crescer como pessoa, mas também como editor, ao publicar livros e autores proibidos pela censura, tornando-se cedo uma referência, no meio intelectual, de cidadania e luta pela democracia e por direitos.

Foi a sua preocupação com as causas sociais que o levou a fazer da Cortez Editora uma referência nas publicações no campo do Serviço Social e da Educação. Sua vocação para o comércio era perceptível, assim que o conhecíamos. Era o editor dos sonhos de qualquer autor pois não tinha pejo de encher um fusca com caixas de livros e sair vendendo-os nas praças, feiras, exposições.

A presença constante da banquinha da Cortez em qualquer evento de dimensão nacional era garantia da melhor divulgação possível. Como alguém que tem a felicidade de tê-lo como editor, posso testemunhar o carinho que devotava a cada lançamento, a honestidade, rara no campo editorial brasileiro, de pagar regularmente direitos autorais a seus autores, o empenho com que frequentava gabinetes de prefeitos, governadores e do governo federal em busca de colocar os livros que editava em programas oficiais.

Nos últimos anos padeceu com os calotes vindos do governo federal e de grandes livrarias em processo de recuperação judicial. Foi um apaixonado pela literatura infantil, a base da educação, do letramento e do interesse pelo livro, a ponto de convencer os ladrões que invadiram sua livraria para roubá-lo, no ano de 2005, praticamente o mantendo em cárcere privado, que a coisa mais valiosa que eles poderiam levar dali era livros para que seus filhos, no futuro, não tivessem que seguir o caminho da criminalidade. Dava palestras em escolas para incentivar o amor pelo saber, pela ciência e pelas leituras. Em tempos negacionistas, de propaganda da mentira, da desinformação e da ignorância, em tempos boçais, o Cortez simbolizava a resistência a esse país que se imbeciliza.

O Cortez, já viúvo, em suas muitas viagens pelo interior do Nordeste, para divulgar os livros que editava, soube por uma namorada, da existência de minha tese sobre “A invenção do Nordeste”. Como um editor disposto a acolher as produções de seus conterrâneos, sendo uma espécie de embaixador cultural do Nordeste em São Paulo, já que nunca esqueceu ou renegou suas raízes, amava as coisas da região, a ela sempre retornava, solicitou que eu enviasse o trabalho para análise.

Tempos depois recebo um alentado e competentíssimo parecer me indicando as modificações e cortes que teria que fazer no calhamaço de mil páginas que era minha tese de Doutorado para viabilizar sua publicação como livro. Em 1999, sai a primeira edição de A invenção do Nordeste e outras artes, que passa a receber resenhas e a vender em estados do país como Pará, Rio Grande do Sul e São Paulo, que o Cortez não previra. Recebo dele, um dos muitos telefonemas que me fez, sempre com sua simpatia, sua alegria, sobretudo com seu entusiasmo, me comunicando o sucesso da obra (são até hoje cinco edições e nove reimpressões, além da tradução e publicação em inglês).

Passou a me solicitar a escrita de obras específicas como aquela que figura na importante coleção Preconceitos (Preconceito contra a origem geográfica e de lugar) e o livro Xenofobia: medo e rejeição ao estrangeiro. Agradeço muito a ele por ser o autor que hoje sou, sem sua generosidade, sem sua coragem de apostar num iniciante, talvez não pudéssemos ter partilhado, no último telefonema que me deu, a alegria de ver o livro que lançou transformado em peça de teatro de sucesso, em sua cidade de São Paulo.

Quem teve o prazer de conhecer o Sr. Cortez nunca o esquecerá, era uma pessoa amável, gentil, cortês como seu nome alude, que nos recebia com alegria e gentiliza. Na última vez que nos vimos, já aposentado, me convidou para um almoço em sua casa, quando me contou parte de sua linda história, a história de um migrante, de um retirante vencedor, de um grande cidadão brasileiro, que efetivamente amou o seu país, pois, ao contrário de muita gente de nossas elites, trabalhou com afinco para distribuir conhecimento, para disseminar a educação, a leitura, a ciência, preocupado com o futuro das crianças e com o futuro do país.

O Brasil precisa de muitos José Xavier Cortez, que sejam “semeadores de livros”, título do lindo documentário a ele dedicado, pelo cineasta Wagner Bezerra, que valorizem a educação, a leitura, que valorizem o saber, a ciência e a cultura, que se voltem para resolver as enormes desigualdades e injustiças sociais desse país. Lembrarei sempre de seu rosto indígena (que o fazia se assemelhar a um oriental) se iluminar ao falar de seus novos projetos editoriais, de suas ideias que visavam, sempre, espalhar livros, valores e ideias por esse país. Adeus querido amigo!

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.