Cabra-macho, mitificação do cangaço e criminalidade

Os meninos nordestinos aprendem, desde cedo, notadamente no sertão, que macho não leva desaforo para casa, que não pode aturar uma desfeita sob pena de perder a honra e o prestígio junto aos demais

A migração de nordestinos, em grande quantidade, em direção às grandes metrópoles do Sudeste do país, onde, em sua maioria, vivem em condições precárias, nas favelas e periferias, são fatores explicativos da presença destacada de pessoas vindas dessa região, na composição dos grupos criminosos, como as quadrilhas dedicadas ao tráfico de drogas e os grupos milicianos. Muitas das lideranças desses grupos criminosos são nordestinos ou descendentes de nordestinos.

A milícia mais conhecida da cidade do Rio de Janeiro, por ter realizado o assassinato da vereadora Marielle Franco e por sua proximidade com a família Bolsonaro, que controla a região de Rio das Pedras e Muzema, na zona oeste do município, teve como fundadores migrantes nordestinos, que se instalaram em favelas da área, para trabalharem nas obras de construção de edifícios no bairro vizinho, de classe média alta, a Barra da Tijuca. Visando evitar que na região onde moravam ocorressem crimes como: estupros, furtos, roubos e que o tráfico de drogas pudesse se instalar no território, um grupo de moradores, todos homens vindos do Nordeste, resolveram assumir por conta própria a segurança do local.

O fato de que grande parte dos migrantes nordestinos ocupam os lugares mais subalternos na escala social, são pobres, atuam nas atividades profissionais menos remuneradas e mais desvalorizadas socialmente como: atividades na construção civil; porteiros e seguranças de prédios, condomínios e casas comerciais; frentistas de postos de gasolina; garçons, cozinheiros e atendentes de restaurantes, bares, lanchonetes, empresas de fast-food; serviços gerais; limpeza urbana e empregos domésticos, explica, em parte, porque, notadamente os filhos e filhas de migrantes, uma segunda geração, já nascida na metrópole e não querendo repetir a trajetória de trabalho mal pago, exploração, humilhação e miséria de seus pais, se deixam seduzir pelas facilidades econômicas oferecidas pelo mundo do crime.

Deve-se acrescentar o fato de que o migrante nordestino, notadamente se for preto ou pardo, terá que conviver com o duplo preconceito e com a dupla discriminação por origem geográfica e por condição racial. Além de serem discriminados por serem pobres, por morarem na favela ou na periferia, os migrantes nordestinos e seus descendentes também são vítimas do preconceito por sua origem regional e, muitas vezes, pela cor de sua pele, pelo seu sotaque, pelos seus modos de ser, por seu estilo de vida.

Os estereótipos do paraíba, no Rio de Janeiro, e do baiano, em São Paulo, que de lá se espalhou para os estados da região Sul, marcam todo aquele que chega proveniente dessa região com os signos da inferioridade, da ignorância, do atraso, da breguice, da subalternidade. A revolta contra as humilhações cotidianas sofridas por essa população pode ser um fator alimentador e incentivador para o ingresso de muitos deles numa vida de criminalidade e violência sanguinária aberta.

Mas, creio que há outros dois elementos que se constituem em fatores explicativos da motivação para que muitos nordestinos e descendentes dos nordestinos se façam não apenas presentes como membros de facções criminosas, mas venham a se constituir em lideranças dos agrupamentos criminosos nas grandes cidades brasileiras. Esses fatores são pouco abordados e levados em conta na hora de se entender do porquê os nordestinos aparecerem como fundadores e lideranças de destaque de agrupamentos criminosos.

O primeiro deles é um certo culto à violência existente na região Nordeste, associada à própria formação e expressão da masculinidade. Há uma valorização da violência, da chamada valentia, do destemor, da coragem, como expressões e performances do que seria um verdadeiro macho. Toda a mitologia presente, tanto na cultura popular, quanto na cultura dita erudita, na chamada cultura regional, em torno de figuras como o coronel, o jagunço e o cangaceiro, alimenta a formação de subjetividades, notadamente das subjetividades masculinas, que relacionam o ser masculino com o ser capaz de violência, notadamente em situações de conflito com outros homens, nas situações em que a honra estaria sendo ameaçada.

Os meninos nordestinos aprendem, desde cedo, notadamente no sertão, que macho não leva desaforo para casa, que não pode aturar uma desfeita sob pena de perder a honra e o prestígio junto aos demais.

O culto ao cangaço, que é feito até por intelectuais das universidades da região, que romantizam e idealizam um fenômeno marcado por práticas como as do assassinato, da tocaia, do enforcamento, da mutilação, da tortura, do roubo, do rapto e do estupro, se apresenta desde cedo na vida de qualquer menino da região, através da tradição oral, da literatura popular e erudita, do cinema, do teatro, da música, da propaganda.

O principal torneio de futebol da região é, orgulhosamente, nomeado de Lampions League. Qual é a surpresa, então, quando um grupo de traficantes, provenientes do Ceará, e atuantes nas favelas da área do Salgueiro, na cidade do Rio de Janeiro, se autodenominam de Tropa do Lampião. A mitificação do cangaço se articula bem com o verdadeiro culto, feito pela extrema-direita, nos últimos anos, do porte de armas.

É comum ver lideranças criminosas se exibindo portando armas de grosso calibre nas redes sociais, da mesma forma que membros das forças de segurança, inclusive aqueles que fazem parte de grupos de extermínio, que podem vir a ser milicianos, também não têm pejo, não apenas de se expor fazendo culto ao armamento, como narram em blogs e podcasts, suas aventuras, muitas delas em que cometeram crimes de tortura e assassinato.

Outro elemento importante par entender essa liderança nordestina na criminalidade é o mito do cabra-macho, é a apresentação da masculinidade exacerbada como um traço nobilitador e de prestígio, mesmo daquele que ocupa posições subalternas nas relações de classe, raciais e regionais. O mito do cabra-macho surgiu no final dos anos vinte, do século passado, como um mito compensatório em relação ao declínio econômico e político das elites senhoriais, agrárias, masculinas do Nordeste do país. Ser macho compensava a falência, o declínio, o desprestígio e, para a maioria dos homens da região, a pobreza, a subordinação, a subalternidade.

Quando o migrante nordestino se viu confrontado com a pobreza, a exploração, a humilhação, o desrespeito, o preconceito, foi a sua pretensa masculinidade superior, exacerbada, que restou como signo de dignidade, honradez e prestígio social. Na grande cidade, na metrópole do Sul, o migrante viu na afirmação da sua macheza, inclusive com o uso da violência, uma das únicas vias de manutenção de respeito e dignidade para si e para a sua própria família.

Não é mera coincidência que podemos ver na imprensa, que o ajuntamento de “baianos” e “paraíbas” passou a ser uma preocupação dos órgãos de segurança pública, que a imagem do nordestino pronto a usar sua peixeira e furar o bucho de outrem, diante de qualquer situação de conflito, de competição e de disputa (inclusive pelas mulheres) passou a circular como uma verdade incontestável e a figurar como uma imagem crível dessa população.

Nordestinos e filhos de nordestinos deveriam e devem aprender a ser cabras-machos desde a infância, notadamente em um ambiente violento e cheio de disputas de todo tipo como uma favela ou uma comunidade periférica, onde a ausência do Estado leva a que muitos conflitos se resolvam localmente, muitas vezes com o recurso ao poder do mandão local. Liderança que foi forjada através da violência aberta, da demonstração de valentia, coragem, destreza, sangue-frio diante de dadas situações. Liderança que foi conquistada na guerra e na morte da liderança anterior.

Para sobreviverem em situações de extrema violência, os migrantes nordestinos e seus descendentes contam com essas tradições culturais, com esses elementos culturais que trazem de seus locais de origem. A glamorização da violência, do uso e porte de armas, como verdadeiros falos artificiais e portáteis, como atestados e complementos da virilidade, como atributos complementares da macheza, sendo objeto de desejo dos homens e de atração erótica por parte das mulheres, explica o culto às armas de fogo como verdadeiras próteses a compor o corpo masculino, não apenas entre os pobres, mas também entre os rapazes de classe média e alta.

Ainda se faz presente entre os homens nordestinos uma associação entre a coragem de matar um outro homem e o grau de masculinidade que se representa. Há uma nítida legitimidade da violência sanguinária em dadas situações como: o adultério feminino, a traição, a desonra, o rebaixamento da masculinidade do outro. Em parte da produção cultural, artística e literária da região certas façanhas sanguinárias ganham ares de heroísmo, até mesmo de justiça. O justiçamento como justiça, o justiceiro como herói popular, explica o apoio social a figuras como os milicianos, os membros de esquadrões da morte, que se tornam, inclusive, deputados mais votados (como caso de Wendel Lagartixa, no Rio Grande do Norte) em alguns estados da região. Não é estranho, portanto, que os migrantes nordestinos, mesmo aqueles que já migram porque são lideranças criminosas, fugindo da perseguição das forças de segurança de seus estados de nascimento, venham a se tornar lideranças de grupos criminosos em outros estados e regiões do país (foragidos do Ceará, José Erasmo de Sousa Filho, o Bigode e Carlos Menezes Bezerra, o Carlinhos, eram lideranças do Comando Vermelho no estado nordestino e se tornaram lideranças da mesma facção no morro do Salgueiro).

O culto a dadas lideranças criminosas, a homens cujo poder advém do uso da violência, o culto ao cabra-macho, ao homem armado, ao homem que demonstra valentia, coragem, destreza no uso das armas, que se faz em armas com a maior facilidade, certo fascínio, erótico e fálico, pelo porte de armas (desde o punhal, a faca, para os homens pobres, o chicote, o rebenque, o clavinote, o revolver, o fuzil, por homens de posses ou que se apossam ilegalmente desse arsenal), são traços culturais que explicam que tantos nordestinos pobres, marginalizados, explorados, vitimas de preconceito, enveredem pelo mundo do crime e aí ganhem destaque e respeito e tornem-se lideranças, inclusive de facções que, hoje, comandam o crime organizado em todo país.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.