O governo Jair Bolsonaro, como ele mesmo admitiu, numa fala feita logo no início de seu mandato, é um governo que veio para destruir o esboço de Estado de bem-estar social, que se havia ensaiado no país, nas últimas décadas. Orientado pela ideologia neoliberal, o atual governo veio para desmontar o Estado a partir de dentro, dando seguimento a política adotada pelo governo golpista de Michel Temer. Como parte de sua visão fascista e autoritária, seu governo faz de tudo para minar, do interior, o Estado democrático de direito e as instituições que o sustenta. Instalou-se no poder, de forma acintosa, uma política predatória em relação às finanças públicas, utilizadas por grupos privados que, do interior do próprio Estado, vem desinstitucionalizando o próprio fundamento da gestão pública, que é a elaboração e execução orçamentária, o tal orçamento secreto e a forma como os parlamentares vêm utilizando os recursos públicos para promover seus interesses privados explicita isso.
A própria lógica miliciana de armar a sociedade civil e atribuir a responsabilidade por prover segurança e liberdade ao cidadão privado e armado, em detrimento das instituições de segurança pública e promoção da cidadania, faz parte dessa lógica de fragilização do Estado, que vê se formar grupos armados paralelos e concorrentes com as forças armadas estatais (sendo o mais estarrecedor, com a conivência das próprias Forças Armadas e instituições de segurança pública).
Jair Bolsonaro foi eleito para reverter as pequenas conquistas sociais que se havia dado nas últimas décadas no país. Maciçamente apoiado pelas elites sociais e econômicas, é um governo de desmonte da legislação que protegia os trabalhadores, aposentados e grupos vulneráveis no país. É a retomada da lógica perversa defendida por nossas elites que se julgam brancas e superiores, de destruição de qualquer política pública que vise a equidade e a igualdade de oportunidades e a redução das desigualdades sociais.
Amparados no discurso da meritocracia, as elites reagiram, através da eleição de 2018 e do golpe de 2016, ao que viam como ameaças a seus lugares e posições sociais vistas como fruto do mérito e não de séculos de privilégios de classe, de raça e de gênero. Não é mera coincidência que esse é um governo majoritariamente apoiado por homens ricos e brancos, aqueles ressentidos e que desenvolveram verdadeiro ódio as políticas de promoção da igualdade social e racial, vistas grotescamente como comunistas.
É a essa recusa e ataque a possibilidade de ascensão social dos pobres, dos negros, das mulheres, dos setores minoritários da sociedade, que se articula o desmonte da educação pública, notadamente das universidades. Os governos petistas, que promoveram uma ampla expansão do ensino superior, que deram continuidade e aperfeiçoaram as políticas de cotas sociais e raciais, que conseguiram triplicar os investimentos em educação superior, que levaram, por conseguinte, a triplicação do número de alunos matriculados no ensino superior público, provaram que o acesso a educação é um poderoso instrumento de mudança social, de integração das classes trabalhadoras a um mercado de trabalho de funções e profissões mais especializadas e melhor remuneradas, antes monopólio daqueles descendentes das elites senhoriais, dos senhores de escravos, que fingem não saber disso ou que isso não faz nenhuma diferença na hora de competir por espaços no mundo do trabalho. A entrada, em grande número, de mulheres, de pobres, de pretos, de indígenas nas universidades públicas, modificando completamente a situação que se verificava até o início dos anos dois mil, de prevalência dos brancos e descendentes das classes médias nas universidades públicas, também explicada pelo discurso da meritocracia, leva a essa necessidade de desmonte da universidade pública.
Não é mera coincidência que o ataque as universidades públicas, que é interesse dos empresários do ensino privado, que ocuparam, desde o início, o Ministério da Educação no atual governo, tenha começado pelo drástico corte no orçamento para assistência estudantil e para a concessão de bolsas de estudo. Fica claro que, desde o início, o objetivo desse governo foi expulsar os pobres e os pretos da universidade, inviabilizando a sua permanência com o fim das ações de assistência estudantil (auxílio moradia, residência universitária, auxílio alimentação, restaurantes universitários, auxílio transporte, etc). A redução drástica do orçamento para ciência e tecnologia, de órgãos como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), atingiu duramente o ensino de pós-graduação no país, ao reduzir o número de bolsas de estudo ofertadas, inviabilizou que aqueles mais pobres que tenham concluído a graduação possam continuar seus estudos. Manter a pós-graduação como privilégio dos já privilegiados socialmente é o objetivo e o resultado que está sendo alcançado.
A queda vertiginosa no número de inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), exame que dá acesso ao ensino superior (em 2021 houve uma queda de cerca de 50% no número de inscritos, cifra que chega a 77% se focalizamos os pobres), mostra que o objetivo de tornar o ensino superior novamente excludente, garantindo a reprodução dos privilégios de classe, raça e gênero e mantendo, quando não intensificando, as desigualdades sociais, está sendo plenamente alcançado. A própria desmoralização do ENEM, promovida pelo próprio governo, visa acabar com essa política pública que foi pensada para facilitar e democratizar o acesso ao ensino superior e a universidade pública.
A distorção completa das normativas do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), que passou a dificultar seu uso pelos mais pobres ao cobrar juros mais altos, é mais um passo para barrar o acesso das camadas populares ao ensino superior, mesmo ao ensino superior privado. Esse governo sequer disfarça que seu objetivo é que os pobres não tenham nenhuma forma de ascender socialmente, evitando assim qualquer mudança nas hierarquias sociais vigentes, continuando a ser uma reserva de mão-de-obra barata para nossa gananciosa e mesquinha elite.
O apoio entusiasta dado pelas associações médicas e por uma boa parcela dos médicos ao bolsonarismo, que chegaram a participar de ações criminosas durante a pandemia, se deve ao partilhamento dessa visão elitista do ensino superior, da defesa do privilégio de classe e raça presentes na formação e exercício da atividade médica no país. O medo ressentido de que a abertura de novos cursos de medicina e as cotas sociais e raciais viessem trazer para os bancos das faculdades de medicina aqueles que antes não podiam passar nem na porta, o pânico classista e racista de que fosse quebrada a exclusividade da elite branca quando se tratava do exercício da medicina, levou a adesão de muitos médicos ao fascismo bolsonarista.
Nesse ano, os seguidos cortes orçamentários estão levando a inviabilização do funcionamento das próprias universidades. A apresentação de projeto de lei visando introduzir o pagamento de mensalidades nas universidades públicas é mais um passo no sentido da destruição dessas instituições. As universidades públicas precisam ser destruídas não apenas para que esse grande patrimônio construído com os impostos de todos os brasileiros (não existe ensino gratuito, existe ensino financiado pelo conjunto da sociedade) seja entregue aos grupos empresariais de ensino (o mesmo que está sendo feito com muitas outras empresas públicas), mas para que com o fim delas também possa se por fim a qualquer possibilidade de mudança social no país, de ascensão dos pobres, dos pretos, dos indígenas, das mulheres, de qualquer abalo na pirâmide de privilégios que sustentam essa elite no poder.
Já que não se tem força política para com uma canetada, uma lei, um decreto privatizá-las, trata-se de destruí-las lentamente (como estão fazendo com a Petrobrás), de inviabilizar seu funcionamento, ir levando a sua paralização e ao seu esvaziamento. A destruição no governo Bolsonaro não é fruto de incompetência e desídia, mas é método, é forma de alcançar os objetivos que motivam seu governo, objetivos que não podem ser expostos claramente.
Faz parte da visão de mundo da extrema-direita, ainda mais de uma extrema-direita religiosa, a desconfiança em relação ao trabalho intelectual, à ciência, à cultura e às artes. Tudo aquilo que pode levar a uma mudança nas formas de pensar, de entender o mundo, toda e qualquer atividade que leve ao questionamento das mitologias, dos preconceitos, do senso comum, da ignorância, toda atividade que possa produzir subjetividades e sujeitos críticos e questionadores, é visto como perigoso e subversivo.
A defesa aferrada do status quo, da ordem vigente, leva a que os setores que hoje se assenhorearam do Estado no Brasil tenham uma enorme má vontade e uma disposição de confronto com os setores intelectuais, científicos e artísticos que põem em questão as verdades ideológicas e mesmo as fake news que sustentam aqueles que estão no poder. As universidades são vistas como antros de comunistas, maconheiros, homossexuais, como lugar de desvio e perversão. Mesmo a nomeação de vários reitores identificados com o bolsonarismo ou de gente que, oportunisticamente, aproveitaram a ascensão de Bolsonaro ao governo para escalar posições de poder no interior da universidade que, de uma maneira normal, jamais alcançariam, até pela mediocridade intelectual e acadêmica de alguns, não aplacou o preconceito contra as universidade, que se deve, sobretudo, ao fato de que elas são espaços em que vidas são modificadas, em que pessoas de origem social humilde podem ter a formação necessária para subir na escala social e concorrer, em pé de igualdade, com os filhos do privilégio social e da branquitude. Elas são uma das únicas formas de se promover, pacificamente, uma revolução social, uma revolução silenciosa que, mesmo cheia de contradições (na universidade também se aprende a reproduzir a ordem social) permite que os de baixo possam sonhar em ser doutor, que a filha da empregada doméstica possa frequentar a mesma sala de aula da filha da patroa, que o menino negro possa se sentar nos bancos das sacrossantas faculdades de medicina e de direito. Foi isso que assustou as elites reacionárias brasileiras e é isso que faz com que elas queiram destruir e desmontar a universidade pública, esse espaço que veem como subversivo e ameaçador.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.