A invisibilidade dos povos indígenas do Nordeste

A região Nordeste abriga, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cinquenta e sete grupos indígenas, presentes em todos os seus nove estados. Os três maiores grupos estão presentes em mais de um estado, como é o caso dos Potiguara, que possuem três comunidades no estado da Paraíba e quatro no estado do Ceará; os Pataxós, que se distribuem por cinco comunidades no estado da Bahia e uma no estado da Paraíba e os Xucurús do Ororubá, moradores de uma comunidade em Pernambuco e os Xucurús-Cariris, que habitam o estado de Alagoas. A região abriga, ainda, comunidades de povos como os Pankararú, Xacriabá, Atikum, Truká, Tupiniquim, Tupinambá, Tapeba, Funi-ô, Pitaguari e Kambiwá. No entanto, no imaginário nacional o Nordeste não seria uma região habitada, em nossos dias, pelos povos originários.

O IBGE calcula que cerca de 126 mil indígenas vivam no Nordeste, embora muitos deles já residam fora de seus territórios, seja no meio rural, seja em solo urbano. Normalmente, as comunidades indígenas são associadas as regiões Norte e Centro-Oeste, existindo uma espécie de invisibilidade dos indígenas que vivem nas outras regiões do país. Somente nos últimos anos, notadamente após a Constituição de 1988, com a organização política desses povos e a luta de suas lideranças, eles começaram a ter certa visibilidade social.

O Nordeste foi uma das regiões onde se deu muitos casos do que se nomeia de emergência ou ressurgência étnica, ou seja, grupos que negavam ou não tinham consciência de sua descendência étnica, de sua origem étnica, e que passam a se reconhecer e se identificar com essa descendência e com essa origem. Por corresponder a área onde a colonização portuguesa se desenvolveu mais intensamente de modo pioneiro, com a implantação da produção da cana-de-açúcar na capitania de Pernambuco, espalhando-se por suas capitanias vizinhas; com a construção da cidade de São Salvador e a instalação do governo-geral, na capitania da Bahia e com a penetração para os sertões, com a pecuária, a área que corresponde hoje a região Nordeste foi onde primeiro se deu o genocídio dos povos indígenas, com a maioria deles recuando para o interior, a medida que eram derrotados e perseguidos pelos colonizadores brancos.

Muitos deles, notadamente aqueles que se submeteram ou colaboraram, por motivos estratégicos, com os colonos ou aqueles que foram catequizados, convertidos e aldeados pelos padres da Companhia de Jesus, passaram a viver como agregados das fazendas ou como habitantes dos chamados aldeamentos indígenas. No século XIX, como foi o caso da província do Rio Grande do Norte, muitos desses aldeamentos foram elevados a categoria de vilas e sua população deixou de ser considerada indígena, dado o próprio processo de miscigenação e a incorporação, crescente, por parte desses povos do estilo de viver ditos civilizados, da adoção por eles de hábitos e costumes trazidos e impostos pelos brancos.

O genocídio foi acompanhado, portanto, pelo etnocídio, com os indígenas esquecendo suas línguas originárias, esquecendo as mitologias que organizavam sua existência, renegando, por pressão dos padres, suas crenças e rituais religiosos, passando a se vestir como brancos, esquecendo seus costumes e corporeidades que os singularizavam como indígenas de dadas etnias.

Mas, já na década de vinte do século passado, os Fulni-ôs recorreram ao recém-criado Serviço de Proteção ao Índio (SPI), através do padre Alfredo Pinto Dâmaso, para terem sua condição de indígenas reconhecida. É a essa recusa de desaparecer na multidão, de ser incluído na chamada população ou no povo da nação brasileira, que caracteriza o que se chama de emergência ou de ressurgência étnica. Essa postura, que é uma tomada de posição política, incomoda aos chamados assimilacionistas, todos aqueles que reivindicam como futuro para os povos indígenas a sua diluição no seio da população brasileira.

Há no genocídio do povo Yanomami, sugerido por setores militares há algumas décadas e levado a efeito, deliberadamente, no último quadriênio, esse intento de impedir a continuidade da existência de povos que, ao reivindicarem uma ancestralidade anterior a própria existência da nação, da brasilidade, se colocariam na contramão da construção da identidade e da unidade nacionais.

A ressurgência ou a emergência étnica contesta e vai na contramão do processo de colonização, dito processo de civilização, que configurou a sociedade brasileira, à medida que reafirma a existência e a singularidade de povos que foram considerados selvagens e bárbaros, verdadeiros obstáculos para a construção de uma sociedade moderna e civilizada.

Além de corresponder a primeira área de contato mais intenso entre brancos e indígenas, onde os conflitos e as matanças se deram pioneiramente, o Nordeste é definido, nos próprios discursos que o configurou como uma região à parte no país, como uma área onde a miscigenação racial teria sido a tônica, onde as misturas entre as chamadas três raças formadoras da nacionalidade (brancos, indígenas e negros) teriam sido muito intensas, impedindo, assim, a sobrevivência dos povos originários em sua singularidade étnico-racial. A ideia prevalecente é que dada a miscigenação generalizada ocorrida nessa área da colônia, o Nordeste não guardaria mais exemplares das raças originais.

Um dos elementos que explicam o preconceito contra os nordestinos é justamente essa ideia de que todo habitante da região é mestiço, tem sangue das ditas raças inferiores (indígenas e negros) correndo em suas veias. No entanto, contradizendo as leituras da história do Brasil e do Nordeste que tomam a mestiçagem como argumento central para defender a ideia da constituição de um povo brasileiro homogeneamente mestiçado, notadamente após a Constituição de 1988 garantir aos remanescentes dos povos originários o direito a terra, muitas comunidades vieram a público para reivindicar suas origens indígenas. Povos como os Kapinawá, no estado de Pernambuco, os Pankararú, nos estados de Pernambuco e Bahia, os Eleotérios do Katú e Mendonças do Amarelão, no Rio Grande do Norte, o povo Karuazu, em Alagoas, entre outros, passaram a assumir a identidade indígena e reivindicar a demarcação de suas terras.

Muitas dessas ressurgências étnicas contaram com a participação das novas gerações, dos jovens que, ao ingressarem na vida escolar, ao terem acesso a educação e aos debates em torno dos direitos dos povos originários, passaram a se reconhecer como indígenas e a estimular os mais velhos a recompor suas memórias, a relembrar mitologias e rituais, a buscarem recuperar as marcas de pertencimento perdidas ou que permaneciam no campo da oralidade. O fato de habitarem o mesmo território há muitas gerações, de formarem, muitas vezes, comunidades isoladas, no meio rural, muitas vezes sendo vítimas de preconceito do entorno dado o seu modo de vida particular, facilitou essa redescoberta da origem indígena e o assumir publicamente essa condição, que é, como sabemos, ainda hoje, assumir a condição de subalternidade.

O imaginário em torno dos povos indígenas ainda é povoado de preconceitos e desinformação. A imagem do indígena preguiçoso, indolente, bronco, perigoso, ignorante, ainda acompanha as existências desses povos. Não se imagina que mais de trinta por cento dos indígenas que vivem no Nordeste são habitantes do meio urbano e que muitos deles alcançaram o ensino médio e começam a frequentar cursos universitários. A imagem do indígena como alguém que anda seminu, que porta arco e flecha, que anda descalço, que desfila todos os anos nas chamadas tribos de índios carnavalescas, algumas delas usando roupas de tribos norte-americanas, há muito não corresponde a realidade dos indígenas brasileiros, basta ver como se veste, como fala e como se coloca em público a Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara ou o cearense Weibe Tapeba, Secretário Especial de Saúde Indígena.

Os Tapebas são um exemplo desse processo de ressurgência ou de emergência étnica ocorrido com os povos indígenas nordestinos. O estado do Ceará, por ser uma das áreas do território que hoje compõe o Nordeste, para onde se deslocou muitos dos povos indígenas que habitavam o litoral leste do Atlântico, fugindo da colonização branca; por ter tido uma colonização mais tardia, baseada na pecuária, que proporcionou um maior contato, convivência e miscigenação entre indígenas e colonos, apesar dos muitos conflitos e matanças, tem a sua população majoritariamente formada por caboclos ou mamelucos, por mestiços e descendentes de povos indígenas. Curiosamente, até a década de oitenta do século passado, o Ceará, assim como o Piauí e o Rio Grande do Norte, além do Distrito Federal, era considerado um dos estados em que não haveria presença indígena, segundo a própria Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI).

Os Tapebas, que vivem no município de Caucaia, ganharam visibilidade a partir da atuação da Equipe de Assessoria às Comunidades Rurais da Arquidiocese de Fortaleza. Aconteceu com os Tapebas o mesmo que ocorreu com muitos grupos indígenas, ou seja, para que a ressurgência ou a emergência étnica se efetivasse ou se tornasse pública, para que ganhassem visibilidade, tiveram que contar com a assessoria ou a intervenção de profissionais, como antropólogos, etnólogos, indigenistas ou sertanistas e de instituições como a Igreja Católica. Os Tapebas são o resultado da ressurgência étnica de frações de diversas sociedades indígenas que habitavam o mesmo território, a aldeia de Nossa Senhora dos Prazeres, em Caucaia e os manguezais às margens do Rio Ceará. Essa identidade é assumida e reforçada no processo de luta pela proteção desses manguezais e pelo reconhecimento da ancestralidade histórica da aldeia de Nossa Senhora dos Prazeres, com a sua consequente demarcação como terra indígena.

O etnônimo Tapeba, nome que designa um dado grupo étnico, advém do topônimo de mesmo nome, que identificava uma lagoa e um riacho afluentes da Lagoa da Barra Nova ou do Poço, localizada na área rural do município. Encontram-se referências a lagoa de Tapeba, desde o ano de 1721, com esse topônimo servindo também para designar toda uma área mais ampla banhada por seus afluentes, área que abriga, hoje, os povos Tapebas.

É fundamental rompermos com essa ideia de que os povos indígenas constituem anacronismos, que são coisa do passado, notadamente quando se trata do Nordeste. É preciso que sejamos capazes de ver e de tornar visível os grupos indígenas que, mesmo tendo assumido essa identidade étnica recentemente, são parte da sociedade nordestina contemporânea e querem continuar fazendo parte dela no futuro, sem que para isso tenham que abrir mão da sua singularidade cultural e étnica. Os indígenas não são apenas memória e passado, como muitas narrativas acerca da história do Nordeste fazem crer. Os indígenas têm uma linda história de resistência e de resiliência em busca, simplesmente, do direito de existirem como são e querem ser. É fundamental que pensemos os indígenas como sujeitos da história contemporânea do Nordeste.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.