Intelectuais e militantes políticos que se dizem de esquerda e que, portanto, de saída já assumem duas identidades (a de intelectual e/ou de militante e de esquerda) fazem constantes e acerbas críticas ao que chamam de “identitarismo”. Como costuma ocorrer com conceitos e categorias terminadas pelo sufixo ismo há nessa denominação certo tom pejorativo. Estranhamente, aqueles que se dizem defensores de uma dada forma moderna de fazer política, parecem desconhecer que toda a política moderna é identitária, ela se deu em torno das identidades nacionais ou regionais, das identidades de classe, das identidades partidárias ou de posições político-ideológicas. Mas, com essa espécie de pecha desclassificatória o que se pretende nomear são os movimentos sociais, é a militância política feminista, a militância dos homossexuais e transexuais, a militância antirracista, a militância ecológica, a militância anti-etarista ou anticapacitista. Esses críticos defendem que essas lutas, que consideram menor, periféricas, individualistas, personalistas, do âmbito do privado e da intimidade, estariam empanando, substituindo, fazendo esquecer o que julgam ser a luta central e principal, aquela que efetivamente importa: a luta de classes. Essas lutas terminariam por beneficiar o capital, a reprodução do capitalismo, da ordem burguesa, por desviarem o foco das lutas sociais em relação ao que verdadeiramente importaria: a realização da revolução socialista, que poria fim a sociedade em que vivemos.
Esses intelectuais e militantes costumam se dizer materialistas, mas a primeira coisa que fazem é negar a importância da nossa dimensão material, nossa condição carnal, nossa condição de sujeitos encarnados, que elaboraram, ao longo de sua formação, dadas corporeidades, dadas maneiras de se ver e se entender, de aparecer como seres humanos. Operando com categorias sociológicas abstratas, que colocam no lugar de sujeitos das práticas e discursos que julgam válidos, realizam um primeiro gesto de alienação, a alienação em relação a sua própria carnalidade e, com ela, em relação a seus desejos, seus afetos, suas emoções, suas percepções e sensações. Fazendo um discurso em nome do proletariado, da classe trabalhadora, do povo, do povão, dos subalternos, dos vencidos, o que temos são sujeitos que não fedem nem cheiram, que não sentem dores ou sofrimentos, sujeitos que são enteléquias mentais, são abstrações conceituais, sujeitos que permitem que aquele que emite o discurso, aquele que fale também se coloque nesse lugar abstrato de sujeito, que quem fale não olhe para seu próprio umbigo, para sua carnalidade, para seus desejos, para suas paixões tristes ou alegres. É o velho sujeito cartesiano, pura mente, puro logos, pura consciência, pura racionalidade desligada de qualquer relação com o que seriam as baixezas do carne, do corpo, dos sentidos, dos sentimentos. Estamos diante do ódio cristão contra as carnes que, no fundo, é o ódio contra a vida, contra os seres vivos que somos, o ódio contra os limites que sermos de carne e osso nos impõe. Estamos a um passo da desvalorização da vida, daqueles que se dispõem a se imolar em nome de um ideal, em nome da transformação social e entrada num mundo perfeito, paradisíaco. Mais cristão do que isso impossível. A história continua sendo um teodiceia, uma jornada guiada por Deus, na direção da revelação final da verdade e do bem.
A crítica aos ditos movimentos identitários é movida por uma indisfarçável, mas talvez inconsciente, desprezo pela vida, já que a luta desses movimentos sociais, desses militantes pode ser a diferença entre o viver e o morrer. É muito confortável para o intelectual branco, classe média, letrado, jovem, que não porta necessidades especiais, que se identifica como heterossexual e cisgênero acusar de diversionismo aqueles para os quais a luta política é uma questão de sobrevivência. É muito confortável ser esse sujeito que a sociedade coloca e considera como o sujeito universal, aquele que tem o lugar de fala reconhecido e hierarquicamente considerado legítimo e daí emitir discursos de desqualificação da luta feminista que, como sabemos, trata-se da luta por, não apenas, dar dignidade e conferir direitos as mulheres, mas para salvá-las da morte cotidiana. Em um país em que 40% das mulheres sofrem violências físicas, em que a cultura do estupro é uma presença cotidiana, como considerar a luta das mulheres como menor ou uma luta que não deveria sair do espaço privado. Operar, ainda, com essa divisão burguesa entre público e privado é não entender nada das próprias mutações históricas que as práticas políticas ocidentais sofreram, ao longo do século XX, graças, entre outros acontecimentos, pela luta feminista. Desconhecer isso e, a pretexto de que há lutas mais importantes e centrais, pretender recolocar as mulheres no espaço privado é, simplesmente, uma manifestação de machismo, é o sujeito masculino, se colocando como único sujeito que tem legitimidade para falar, é um homem incomodado com o avanço político das mulheres, é um macho fazendo sintoma de seu incômodo com o avanço público das mulheres, inclusive na academia, na universidade.
Como considerar menor e periférica a luta dos negros e afrodescendentes, que constituem 54% da população brasileira, que são a maior parte da classe trabalhadora, do povão, que sofrem uma exploração muito maior no trabalho por serem pretos e pretas, que ocupam as profissões consideradas subalternas, que dispõem de menores chances de ascensão social e de terem acesso a educação, a saúde, as artes, inclusive aos lugares de poder político. A luta do movimento negro, que é desqualificada por esse discurso, ainda não conseguiu evitar que milhares de negros e negras sejam trucidados, todos os anos, pelas forças de segurança, pelo Estado, por causa da cor da pele. Dizer que essa luta nos desvia da crítica ao capitalismo, que ela não é materialista, que ela não é revolucionária ou transformadora é total equívoco. O racismo, assim como o sexismo e a misoginia, são aspectos nucleares na reprodução do capitalismo no Brasil. A raça e o sexo/gênero são traços fundamentais para não se pagar salários minimamente dignos, para a extração de uma alta taxa de mais-valia, para, inclusive, a recriação de formas de trabalho análogas a escravidão. São mulheres negras que são libertadas depois de décadas de trabalho não remunerado, inclusive na casa de professores universitários, que podem, quem sabe, até livrar a sua cara ocupando esse lugar de discurso de um sujeito pretensamente universal, que despreza esse sujeito minoritário, situado, encarnado, materialmente palpável que é essa mulher negra. Ele pode até ser um militante dessa revolução abstrata e conceitual, enquanto espanca sua esposa em casa e tortura psicologicamente ou fisicamente o seu filho ou sua filha homossexual, já que eles seriam, apenas, fruto dos desvios morais da sociedade burguesa. Conheci muitos revolucionários no espaço público, onde já eram candidatos a futuros tiranos, que tiranizavam os seus filhos e suas companheiras no dito espaço privado.
É inacreditável que em pleno início do século XXI, ainda haja quem opera com dicotomias e maniqueísmo já há muito questionados na filosofia ocidental, como a dicotomia corpo e mente, desejo, afeto e racionalidade. Esse sujeito pretensamente só razão, só consciência, esse sujeito materialista que nega assim a materialidade de seus desejos, afetos e emoções é uma versão da subjetividade há muito superada. Ao negar sua condição carnal, a sua condição de sujeito de desejo, de sexualidade, de afetos e desafetos o que se pretende é se colocar no lugar de um sujeito que não tem ancoragem no mundo, que não tem ancoragem sequer em seu próprio ser carnal, o que se busca é ocupar um lugar de sujeito de fala que estaria na condição de emitir um discurso não situado, não limitado, um discurso com pretensão de verdade absoluta, dai o incômodo quando é contestado, por pretensamente ser emitido por um sujeito que fala em nome da razão, do logos, da política, da verdade, tudo com letras garrafais. O que temos aí é o velho sujeito metafísico, pretensamente transcendente, fora da vida e do mundo, um sujeito não mundano, embora possa ter no dia a dia uma vida bem mundana, mas quando se coloca como sujeito político o faria desse lugar acima de todos os lugares particulares. Um sujeito que não olha para seu próprio rabo (imagine se intelectuais que fazem questão de desqualificar a militância homossexual tem isso), que não enxerga que seu lugar de fala primeiro não é o de intelectual, de professor universitário, do comentarista ou especialista de esquerda, mas é o de homem, branco, heterossexual, cisgênero, jovem, etc, etc.
É muito interessante querer desqualificar a luta dos homossexuais e transexuais, cuja luta é para superarem uma expectativa de vida de 35 anos, é para que esse país deixe de ser o que mais mata e trucida homossexuais, em que todos os dias gays e lésbicas são agredidos, injuriados, em que as crianças homossexuais ou transexuais são as vitimas preferencias do bullying escolar e do abandono parental, muitos sendo levados ao autoextermínio, alegando que suas lideranças se engalfinham pelo poder. Só falta sacar o velho argumento, que se mostrou uma falácia nas experiências concretas do socialismo/comunismo, de que a homossexualidade como um desvio moral burguês acabaria com a realização da revolução (sabemos que assim como o nazismo, o bolchevismo também tentou resolver o problema da perversão homossexual, internando-os em clinicas psiquiátricas ou os obrigando a trabalhos forçados nos gulags, além das pavorosas experiências médicas e psiquiátricas). Sugiro que se leia um pouco de história da chamada organização da classe operária, das experiências socialistas (quando as esquerdas vão abrir mão dessas experiências fracassadas para se abrirem a pensar utopias para o nosso tempo, muito mais generosas com as minorias do que aquelas) para ver o nível de engalfinhamento pelo poder de suas lideranças. Diz-se que os evangélicos estão mais atentos ao povão do que aqueles que se dizem de esquerda e ficam militando em torno de seus umbigos. As lideranças evangélicas se engalfinham pelo poder e por dinheiro, assim como Stalin, em nome de ter um poder sem peias, matou grande parte das lideranças que fizeram a Revolução Russa. Em Angola, num único dia, o Movimento para Libertação de Angola, o partido que venceu a guerra colonial contra os portugueses e a guerra civil contra os outros agrupamentos revolucionários (haja engalfinhamento) matou cerca de trinta mil de seus militantes. Portanto, luta pelo poder não é em si demérito para nenhum movimento, daí porque é tão importante o estudo do poder, das lutas pelo poder, inclusive no interior da universidade, onde esses pretensos sujeitos universais, por representarem pretensamente um sujeito que não seria particular: a classe operária, o povo, quer mesmo é poder, é desqualificar os oponentes que militam em nome de outros sujeitos, de outros grupos, que assumem suas identidades particulares e por elas lutam, sem deixar de perceber que suas lutas se articulam a uma luta contra a ordem capitalista que os vitima e discrimina, que se alimenta, inclusive de seus desejos, o que o pretenso intelectual universal parece desconhecer, que o seu desejo de poder (pois é de desejo que se trata), de ser dono da verdade, de ter a última palavra, de ser a encarnação daquele sujeito que tem o direito a fala por representar uma categoria que seria central a ordem burguesa, está também a serviço da reprodução da sociedade que fustiga no conforto de seu apartamento, em suas lives, enquanto os negros, as mulheres, os homossexuais, os transexuais, os portadores de necessidades especiais, os idosos, os portadores de doença mental, os indígenas, os ambientalista têm que enfrentar o desafio diário de voltarem, para casa, com vida, com suas carnes vivas, único ponto de partida para qualquer ação, para qualquer transformação social, a materialidade sem a qual qualquer filosofia materialista carece de sentido. É a vida de sujeitos concretos que importam!
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.