Quando Gerônimo Alcântara atravessa as ruas de Fortaleza, sabe que ninguém resistirá a olhá-lo. Costumam seguir longe com a vista, retinas atentas ao movimento gracioso. É impressionante o excesso de pescoços deslocados pela curiosidade. Bebês, crianças, meias-crianças, quase adultos, adultos e idosos em pacato rebuliço. Mas como resistir?
Num dia, dirige o Opala Comodoro 1991 na Desembargador Moreira. Em outro, o Monza Hi-Tech 1994, azul perolado, na Silas Munguba. Semana que vem pode ser o Del Rey GLX 1989 cruzando o Montese, o Benfica, a Praia de Iracema. Deixam de ser veículos: viram atrações. A largura de cada um, o brilho. A raridade. Mas Gerônimo discorda.
Atração lembra coisa de museu. Os carros dele são de outra categoria. Ainda rodam, ainda avançam quilometragem. Gostam de correr – se o condutor quiser, chegam a 140 km/h em poucos segundos. Geralmente estão em baixa velocidade, porém. O trânsito da Capital engole as habilidades. Só sobra a admiração de quem acha que transporte assim estava aposentado.
“É porque quem me conhece, sabe: desde criança, falo que vou ter um Opala”, diz nosso protagonista, 32 primaveras, colecionador que não se diz colecionador. Mas é. Porque, depois do Opala – conquistado aos 19 anos – o mosquitinho da antiguidade não parou de azucrinar. E então vieram as outras joias, tesouros automobilísticos. Tudo culpa da família.
Explico: os pares de Gerônimo sempre trabalharam com carros, sobretudo o pai – também Gerônimo. Início dos anos 1990, o coroa comumente chegava com um Opala em casa. O filho achava o máximo aquele carro enorme, coisa de Hollywood. E foi aos poucos idealizando para si a vontade de materializar um na própria garagem. Já pensou?
A oportunidade veio cedo, quando passava pela Rogaciano Leite e avistou o verdão imperioso na sucata. Aquilo tinha jeito, ele sabia. Merecia lixo, não. “Você vê dezenas de Opala na vida, mas aquele ali me chamou atenção, e eu comprei”. Na sequência, a surpresa: ao fazer a transferência de dono, percebeu que o carro era o mesmo de quando andava na infância, propriedade da família do ex-prefeito, Juraci Magalhães. Honra.
“Por isso ele tem um valor afetivo imensurável. Posso abrir mão? Claro que posso. O futuro a Deus pertence, a gente não sabe o que vai acontecer. Mas o guardo literalmente abaixo de quatro capas na minha casa”, confidencia. Mas que confidência que nada… Todo mundo conhece o Gerônimo ensandecido por veículos antigos. O Opala é apenas um.
O Monza é outro – com ele desde 2017. Outro caso de amor. Com os amigos, o colecionador mantém cadastro em um sistema no qual eles sabem onde há veículos raros usados no Ceará. Surgiu esse, de uma série mais rara ainda. Painel digital, freios ABS, ar-condicionado, direção hidráulica, completo. Quinhentas unidades em todo o mundo. Uma é de Gerônimo.
É o carro do batente diário. Com ele, não tem moleza. Azul que passa tingindo a cidade, tirando o fôlego dos mortais. O mesmo frisson proporcionado pelo Del Rey – “máquina do tempo”, na boca do dono. É o mais antigo dos três e também o que deu menos trabalho: precisou de reparo nenhum. Tá novinho, na flor da idade. Arrebenta e arrepia.
Na rua Hill de Moraes 155, Edson Queiroz, o trio repousa, engrandecido. Sabem serem notáveis. Gerônimo colhe os louros dessa paixão motorizada. Já investiu bastante em cada um e continua porque sentir é assim mesmo, incalculável. Chamam-no de “O doido do Opala”, “Pistoleiro do amor”. Para os amigos, empresta os carangos; no geral, não. Ciúme.
Pudera: entre quatro vidros, muita história já rolou. O antigo dono do Monza, por exemplo, vendeu o bendito porque lembrava a ex-namorada. Caso de saúde mental. O Del Rey também carrega um bem-querer pretérito. Ao chegarem no sítio onde o carro estava, prontinho para venda, Gerônimo e a antiga companheira se entreolharam. “Sempre tive vontade de a gente ter um Del Rey”, ela jogou. “Pois ele agora é nosso”, o parceiro selou.
E, assim, quando você dobrar a rua e uma relíquia rasgar o asfalto, vai saber que é Gerônimo. Ele trafega com esse passaporte todo, essa identidade, esse santuário. Paga muito combustível – os carros consomem que é uma beleza – mas exibe sorriso, óculos escuros, chapéu na cabeça. É o guardião da coisa toda. É quem sonha sonho comprido de vontade e liberdade.
“Quero envelhecer com meus carros. Descer até o sul do país ou subir pro norte e ir pro Recife, numa grande viagem. É uma meta, envelhecer com eles e usá-los. Não ter pena de usá-los. Ter cuidado é uma coisa, temer é outra. Você cuidando, meu amigo, eles duram a vida toda. É isto: deixar os carros serem carros”.
*Esta é a história de amor de Gerônimo Alcântara e os três carros raros dele. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.