No dia 6 de junho de 2001, a vida em Rabo de Peixe mudou. Uma embarcação naufragada espalhou meia tonelada de pacotes de cocaína pela costa do vilarejo. O que aconteceu a partir daí não foi apenas uma investigação policial. O impacto social da chegada da droga é sentido até hoje e o enredo dramático, embora fascinante, acaba de ser anunciado como a segunda produção portuguesa da Netflix.
As gravações já começaram e o nome da série é simplesmente Rabo de Peixe. O vilarejo tem, hoje, quase nove mil habitantes. Na época do “verão do pó” tinha pouco mais de sete mil. A localidade faz parte de São Miguel, a principal ilha do arquipélago dos Açores, vive basicamente da agricultura, pesca e criação de gado, sem ninguém rico hoje, muito menos 21 anos atrás.
Quando a população começou a ver estranhos pacotes aparecendo na areia, nem sabia do que se tratava. A cocaína viajava desde a Venezuela e tinha como destino final uma ilha na Espanha. Grau de pureza: 80%. O valor da carga, hoje, seria de 150 milhões de euros.
Quando começou a perceber os problemas na embarcação, o italiano Antoni Quinzi, depois preso, tentou se livrar da droga, afundando os fardos para buscar mais tarde e seguir viagem. Mas a agitação do mar fez com que, aos poucos, a cocaína fosse emergindo.
Rapidamente, a droga se espalhou pela ilha. Começou a ser consumida e vendida. Em bares, um copo cheio de cocaína podia ser comprado por míseros 25 euros. Pela imprensa, encontram-se facilmente relatos de quem levava cocaína em meias, baldes de tinta.
O jornal britânico The Guardian conta do homem que pagou um amigo com 300g da droga só para usar um carregador de celular. Há ainda as lendas da culinária. Era tanta cocaína que houve quem fizesse peixe frito empanado nela, como se fosse farinha. Ou quem jogasse colheradas no café, como se fosse açúcar.
O verão do pó teve um irmão brasileiro anos antes. Em 1987, 22 toneladas de maconha, disfarçadas em cerca de 13 mil latas de leite em pó, começaram a aparecer no litoral do Rio de Janeiro, São Paulo, até o Rio Grande do Sul. A carga foi despejada por traficantes de uma embarcação que seguia para os Estados Unidos. Assim como em Rabo de Peixe, o “verão da lata” atraiu a população na caça à maconha. Mas o impacto social entre as duas situações nem se compara.
Poucos dias depois do naufrágio na pequena vila açoriana, já havia 20 mortos por overdose e vários pacientes internados com sintomas de intoxicação. Até hoje, os Açores lideram os piores rankings relativos ao consumo de substâncias químicas em Portugal e viraram rota oficial do tráfico internacional de drogas.
No vídeo de divulgação, a Netflix promete uma série cheia de “reviravoltas, humor, paixão e sobrevivência". Ninguém duvida que a história real teve tudo isso, mas o anúncio já dividiu os portugueses. Os cinco atores do núcleo principal não são dos Açores e esse pode ser um problema grave.
O sotaque açoriano é único. O de Rabo de Peixe, especificamente, transforma a língua portuguesa quase em um dialeto. Eu, particularmente, gostaria muito de ouvir sobre o verão do pó com a mesma narração com a qual conheci o molhe de Rabo de Peixe. Seria ativar a legenda e garantir uma dose a mais da veracidade de um enredo tão insólito, que também passa pela singularidade da oralidade local.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.