Antônia Márcia da Silva Lopes, a Marcinha, mora onde a emergência climática já chegou há muito tempo. Cresceu bebendo água de poço “com gosto de folha”, numa comunidade rural de Quixadá, umas das regiões mais áridas do Ceará. Quem vive ali precisou aprender a conviver com secas cada vez mais longas e a lidar com um calor tão grande que há quem diga que, ali, “tem um sol pra cada um”.
Ela caminhava muitos quilômetros todos os dias para participar de cursos de uma ONG. Tinha dois objetivos: ganhar uma cisterna do Governo e virar doutora do seu lugar. Conseguiu os dois. Conhecedora da sua terra e da arte de conviver com a seca, Marcinha já viajou por vários países da América Latina para pregar o conhecimento do sertão. Mas, antes de chegar nesta parte, é bom conhecê-la melhor.
Marcinha não come carne de bode porque lembra do seu aniversário de cinco anos. O pai, que havia matado o animal para oferecer aos padrinhos dela, disse que a partir daquele momento ela moraria com eles porque já não tinha mais condições de criá-la. A menina foi embora de casa chorando e, por mais que pedisse para ir à escola, mal pôde estudar porque precisava ajudar a mãe adotiva com trabalhos de crochê que vendia.
“Minha madrinha dizia que, pra eu aprender a assinar o nome, não precisava sair de casa. Eu também não podia brincar, então fui trabalhar”, conta. Só lhe era permitido brincar com uma boneca aos domingos e se ela houvesse cumprido o que a madrinha esperava que produzisse durante a semana.
Marcinha casou aos 16 anos. Mal havia concluído o segundo ano do ensino fundamental, quando engravidou do primeiro filho, no ano seguinte. Pariu no meio de uma grande seca, que castigou o sertão durante quatro anos. O filho nunca tomou uma mamadeira grande porque a família não tinha condições de pagar o leite, e ela trabalhava lavando roupa e fazendo faxina para completar a renda de casa.
“Mas eu sempre pensava que, no dia que tivesse chance, ia estudar”, lembra. Concluiu os estudos muitos anos depois, graças às aulas do Telecurso 2000, um programa de TV que ensinava disciplinas do ensino fundamental e médio.
Mas conhecimento mesmo Marcinha diz que só conquistou depois que ganhou a primeira cisterna, com os cursos na ONG. “Eu passei a dar valor ao que eu produzia e aprendi que, dessa terra onde tantas vezes me perguntei se ia ser capaz de sobreviver, a gente pode aproveitar tudo. Vi que tinha uma riqueza que não sabia usar”, diz.
Marcinha vive hoje implantando o que aprendeu nas inúmeras reuniões e cursos que participou com agricultores da região. Conhecedora de seu lugar, está o tempo todo reinventando formas de conviver com o semiárido.
A experiência a levou para muitas outras cidades brasileiras e também para alguns países do corredor seco da América Latina. Nos eventos em que participa, explica as técnicas de gotejamento, uma forma de aguar as plantações economizando água. Também conta como aprendeu a reutilizar a água do banho e da roupa para aguar as fruteiras. E do minhocário que mantém para fazer a compostagem utilizada na produção de seus orgânicos.
A mulher do sertão não se formou em uma universidade, mas é detentora de um diploma simbólico: o de aprender a conviver com a emergência climática, o grande desafio da humanidade para os próximos anos. “Não troco o meu diploma pelo de médico nenhum. Tá pensando que meu conhecimento não é tão rico como o teu? Eu entendo o lugar onde eu vivo. Isso é o maior privilégio que eu poderia ter.”