Base de todo processo de incorporação imobiliária, a terra urbana é um ativo econômico e, em cidades capitalistas, sua disponibilidade é socialmente restrita. Por isso, não é estranho deduzir que uma residência urbana, bem servida de infraestrutura, consiste numa das mercadorias mais valiosas e, desta forma, menos acessíveis à massa de trabalhadores assalariados.
Diante disso, é sabido que muitos brasileiros carecem de políticas públicas habitacionais para garantir moradia na cidade. Em maioria, os recursos e rendas familiares no Brasil são insuficientes para formar poupança ou acessar crédito, condições sine qua non para inclusão no mercado imobiliário empresarial.
Tudo isso agravado pelo histórico de esvaziamento do campo derivado da pobreza e ampliação descomunal da população urbana. Resultado: de acordo com os dados da Fundação João Pinheiro, atualmente, 5,8 milhões de moradias é o número a representar o déficit habitacional no nosso país, ou seja, esse é passivo urbano-residencial das cidades brasileiras.
Das muitas possíveis, a construção de moradias populares em larga escala foi uma das principais soluções, tanto nas políticas do extinto Banco Nacional da Habitação como no Programa Minha Casa Minha Vida, maiores exemplos de utilização de recursos públicos para tal fim.
Nos dois programas habitacionais, tentou-se equacionar a escassez dos recursos, o elevado preço da terra urbana e a grande necessidade de habitações, construindo megaconjuntos habitacionais, compostos por centenas ou por milhares de habitações padronizadas e localizadas em áreas desassistidas de boas condições urbanas, as conhecidas zonas periféricas.
Se econômica e quantitativamente a construção dos grandes conjuntos habitacionais é bom negócio, já não se pode dizer o mesmo se considerarmos os aspectos sociais e urbanísticos. Deslocar centenas ou milhares de famílias, por mais precárias que sejam suas habitações anteriores, e agrupá-las aos montes, tende a gerar muitos conflitos e estranhamentos sociais.
Caso não haja acompanhamento social dessas famílias, o sonho da casa própria pode se tornar um pesadelo, como se vê em conjuntos onde as famílias não usufruem de serviços básicos públicos ou são marcadas pela segregação relacionada às disputas entre grupos criminosos, como as facções.
Além do mais, geralmente bem distante e sem contar com transporte de massas apropriadamente planejado, as localizações periféricas onde geralmente os conjuntos habitacionais são construídos dificultam aos seus moradores o acesso aos bairros concentradores dos postos de trabalho na cidade (zonas comerciais e de serviços). Para a estrutura da cidade, os megaconjuntos podem se transformar em enclaves, posto não dialogar com o tecido urbano pré-existente, fato a produzir ilhas habitacionais, por vezes estigmatizadas como territórios dos pobres ou lugar de criminosos. Sem muita dificuldade, podem ser verificados, de norte a sul do Brasil, casos semelhantes ao descrito.
E qual a melhor opção? A situação ideal é o processo de reforma urbana, ou seja, por no centro do debate a função social da propriedade na cidade.
Já existem instrumentos urbanísticos na legislação urbana brasileira, como por exemplo a regulação das Zona de Interesse Social. As municipalidades, apoiadas pela União e pelo Estado, podem elaborar planos audaciosos de construção de pequenos conjuntos em áreas bem servidas de infraestruturas e associadas às centralidades urbanas, evitando a segregação ou o isolamento de centenas ou milhares de famílias. Requalificação de áreas centrais degradadas e a proposição de aluguel social são outras alternativas ainda pouco postas em prática.
Uma minoria, muito beneficiada pelo mercado imobiliário, tende a discordar e contrapor-se a tais propostas, afinal a venda dos pedaços da cidade é um negócio bilionário. E é por isso que temos que aguçar os processos democráticos e fazer valer a justiça espacial. Se a cidade é um produto social-coletivo, é imoral que suas benesses sejam monopolizadas.