Das funções da calçada, lembramos, carinhosamente, do costume de reunir parentes e vizinhos para uma trivial conversa, uma boa fofoca e até um cafezinho. Neste caso, a calçada serve como uma extensão da moradia, um espaço de transição entre a vida privada e a coletividade; entre a casa e a rua, como diria o antropólogo Roberto DaMatta.
Essas práticas são desenvolvidas em muitos bairros populares da cidade de Fortaleza. Tais usos, para uns, representam resquícios de uma sociedade provinciana, fechada às suas raízes interioranas; já outros, os consideram como resistência popular à modernização, como alternativa para construção de uma cidade menos violenta e mais solidária.
Além dessa primeira forma de apropriação, atualmente, a noção de cidade confortável, amigável e convidativa ao pedestre, exige, entre outras funções, formas e características relativas às calçadas. É por isso que o Código da Cidade de Fortaleza, lei complementar 0270, de 02 de agosto de 2019, dedica um capítulo inteiro a elas.
A legislação municipal aponta os responsáveis pelos imóveis como também responsáveis por construir ou reconstruir suas calçadas “de modo a garantir a acessibilidade”. À municipalidade cabe agir quando houver empreitada que leve à alteração do nível das vias, daí a adequação das calçadas vem a reboque.
Os parâmetros construtivos são, igualmente, detalhados. Nenhuma calçada deve ter faixa livre menor que 1 metro e 50 centímetros de largura, não são aceitos declives maiores que 3% (três por cento) e, em hipótese alguma, as calçadas podem ser substituídas ou obstruídas por degraus, rampas, trilhos, postes, paredes e diferenças de nível.
Saindo do mundo dos códigos e das leis, a realidade na capital é bem diferente das regulamentações urbanísticas. Com raras exceções, nossas calçadas são terríveis, verdadeiras pistas de obstáculos, repletas de armadilhas para o caminhante.
E esse problema está disseminado por toda a cidade, não sendo só característica dos bairros menos dotados por infraestrutura. Por estes dias, circulei por duas zonas reconhecidas como “nobres” em Fortaleza. Tentei caminhar pelas calçadas, passei por clínicas, residenciais, lojas e tudo mais. O que presenciei foi uma lista de irregularidades e nada de acessibilidade.
Dada a experiência pessoal, fiquei a imaginar como um cadeirante ou um deficiente visual faria seu percurso tendo que superar buracos (crateras), rampas abissais e desníveis de mais de 50 centímetros. Quando o lixo não estava entre um portão e a rua, comerciantes utilizavam o espaço público para expor suas mercadorias e transformá-las em estacionamento para automóveis. Em outras palavras, procurar acessibilidade nas calçadas da cidade é missão (quase) impossível.
A cidade tem tantos problemas que as calçadas parecem o menor deles. Interpretação completamente equivocada, penso eu. Calçadas apropriadas e conservadas significam um convite ao usufruto dos espaços públicos e um compromisso coletivo de melhoramos a cidade.
Os critérios expostos no Código da Cidade são claros, inclusive, aqueles a tratar da fiscalização, das autuações e do prazo dado à adequação conforme indica a lei. Contudo, para que não se alegue mil e uma justificativas, sugiro campanha capitaneada pela municipalidade com dois momentos: 1. Educação patrimonial com foco nas calçadas e na necessidade de mantê-las em estado próprio; 2. Fiscalização, esclarecimento técnico e autuação.
Sem querer ser pretensioso, sugiro até nome para a campanha: Fortaleza das boas calçadas! Como diz o bordão do comediante: “vai que cola!”
"Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor”.