8 de janeiro. Nesse dia, as espadas dos reis da cultura popular de Juazeiro do Norte e do Cariri foram cruzadas e postas ao chão. Os guerreiros choram, com dor no coração, a partida de um brincante. A ancestralidade aquece o seu rito e nas ruas os grupos de tradição se reúnem para a despedida final do Mestre Cícero Frank Severino da Silva, 44, o Mestre Cicinho, do Reisado Manoel Messias, do bairro PIO XII, uma das comunidades mais tradicionais pela riqueza da presença dos grupos de tradição popular do Município e da Região do Cariri.
Estava nascendo o Dia de Reis, quando ainda na madrugada o Mestre Cicinho montava o trono para os tradicionais festejos alusivos à data do 6 de janeiro. Dois homens chegaram em uma motocicleta e nesse momento foram efetuados os disparos que tiraram a vida do brincante, que naquele momento estava com o seu coração em festa para celebrar o Santo Reis. A data é tradicional para os grupos saírem às ruas em comemoração.
A cidade estava se preparando para festejar o tradicional Ciclo de Reis, como em todos os anos tem acontecido, num misto de cultura e religiosidade, fazendo dessa festa o trono também das comunidades, das periferias, que brilham nas ruas com as vestes trabalhadas no brilho espelhado do luxo cultural, da ancestralidade de um povo que resiste.
Independente do que seja apurado em relação à motivação do crime, há décadas tem-se clamado por mais segurança nas comunidades, onde ocorrem tradicionalmente os festejos. Por muitos anos, quando cobria esses cortejos para o jorna Diário do Nordeste, acompanhei esse movimento, com a saída de grupos de algumas áreas, uma delas do bairro João Cabral confluindo todas ao largo do Socorro, onde hoje foi levado o corpo do Mestre Cicinho, sepultado no cemitério do Socorro.
Os grupos, com a comunidade em festa, saem em cortejos pelas ruas. A figura de um personagem chama a atenção: o cão. A dinâmica assumiu outra feição com essa figura. É um semitom para a musicalidade vibrante que destoa do reflexo da luz no espelho, mostrando o contraponto, mais brusco e desarmonizado. A bebiba alcoólica se torna outra grande preocupação, já que muitos dos participantes iniciam cedo a brincadeira, com álcool na cabeça.
Há os brincantes que, em sua maioria, dedicam o dia para uma imersão na alegria de reis, na cantoria, nos louvores ao Menino Jesus. Mas há as distorções quanto à preservação dessa visão mais tradicional, que são aqueles que fogem do aspecto mais do sagrado, adentram no profano, levando consigo os dissabores da vida regados ao álcool e a uma falsa alegria, transformando em uma ilusão, que trafega pelos mares turbulentos da violência.
Nas últimas décadas, essas manifestações têm deixado um rastro de sangue, que precisa passar por um processo de reflexão, da importância de uma atuação do poder público nessas comunidades de forma mais incisiva.
A cultura da violência não pode engolir a festa da alegria, dos reis da brincadeira, do luxo da tradição, com seus brincantes abraçados pela pura nobreza ancestral no coração das comunidades.
Mestre Cícero tinha uma habilidade admirável na luta de espadas. Manipulava o metal assim como afinava também outros brincantes a levar no gosto a arte, afiados na brincadeira do existir, do fazer transcender e manter viva a cultura da alegria. Ver os reis, os brincantes, verterem suas lágrimas sobre o corpo do Mestre Cícero no caixão, onde estava com as vestes tradicionais do reisado, na Capela do Socorro, me fez sentir uma enorme tristeza, e perceber a grandeza da perda de um rei coroado pelo saber de manter vida uma tradição, de elevar a sua existência a outro patamar de ressignificação.
Que a vida de Mestre Cicinho, independente da motivação do crime, não seja levada para fora do contexto e fique no esquecimento, sem que se lance um olhar mais aprofundado aos grupos de tradição. Que a importância desses personagens da realeza cultural seja elevada a outro patamar. Que a relevância não venha pela dor da sua perda, mas pela nobreza da existência dos nossos grupos de tradição, a começar pela valorização maior em vida dos nossos grupos e seus mestres. E que a justiça seja feita ao nosso rei, que morreu com sua espada em punho, defendendo até o fim a tradição popular.
*Elizangela Santos é jornalista