A situação climática do País não está nada favorável no início do segundo semestre de 2024, com a seca que atinge todo o Brasil. Queimadas na Amazônia, no Pantanal e em São Paulo, além de mudar a paisagem do céu do Ceará, causam outro problema importante: diminuição no nível dos reservatórios de água e, consequentemente, aumento no preço da conta de energia no Brasil.
Isso acontece porque, com a capacidade reduzida das hidrelétricas, outras fontes geradoras de energia, como termelétricas, precisam ser acionadas. O problema é que, além de afetarem o meio-ambiente, essa produção é mais cara. O custo disso, claro, vai para o consumidor.
Dados de agosto de 2024 do Sistema de Informações de Geração (Siga) da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) apontam que o Brasil superou os 200 gigawatts (GW) de potência total instalada na geração centralizada, isto é, aquela que é produzida e disponibilizada no Sistema Interligado Nacional (SIN).
Desse total, aproximadamente 77% são de fontes totalmente renováveis, utilizam combustíveis limpos para geração (água, vento e luz solar). As hidrelétricas continuam sendo as principais: 54% de toda a eletricidade que abastecia o Brasil em agosto, em média, são das usinas que utilizam as quedas d'água.
Qual a influência do sistema de energia no Brasil?
Dois subsistemas de reservatórios de hidrelétricas estão sendo prejudicados pelas questões climáticas em curso no Brasil. O Norte e Sudeste/Centro Oeste são motivo de atenção pela Aneel e pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
Oficialmente, o posicionamento do ONS indica que "não há qualquer problema de atendimento energético e que o SIN dispõe de recursos suficientes para atender a demanda por energia". Apesar disso, o operador vem observando uma redução gradual no volume dos reservatórios.
A afluência, ou seja, o volume de água que chega ao reservatório de uma hidrelétrica e que pode ser transformado em energia, está abaixo da Média de Longo Termo (MLT), que é a média verificada para um histórico de 94 anos de medições. Com as chuvas abaixo do esperado, há uma menor disponibilidade de recursos hidráulicos, especialmente no Norte do País, cuja contribuição para o atendimento à ponta de carga é fundamental.
A chamada ponta de carga é o período mais crítico do dia para o ONS. Geralmente englobando três horas diárias, entre às 17 horas e às 20 horas, é o horário de pico do sistema.
Durante esse período, a atuação das hidrelétricas, em condições normais, é fundamental. Na transição entre a tarde e a noite, começa a mudança de geração renovável, quando os painéis solares começam a produzir menos após o pôr-do-Sol e as turbinas eólicas aproveitam-se dos ventos, mais fortes no período noturno.
Como o Brasil não pode armazenar eletricidade por questões legais, tudo o que é produzido tem que ser imediatamente jogado no SIN e distribuído conforme a demanda. Durante a ponta de carga, as hidrelétricas são essenciais, justamente para fornecer a energia necessária.
Termelétrica acionada no Ceará
Como o ONS vem reportando problemas em equilibrar os subsistemas em virtude da redução do número de chuvas, a solução adotada para suprir a demanda foi a ligação das termelétricas.
Em agosto, por duas vezes, foram acionadas as duas usinas geradoras no Ceará, instaladas no Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp). Ao longo de duas semanas, a Energia Pecém, como é chamado o parque termelétrico, queimou carvão mineral para produzir energia para o SIN.
Conforme a Mercurio Asset, empresa proprietária da Energia Pecém, está chovendo menos do que o esperado no Norte do Brasil, e a onda de calor no Sul e Sudeste em pleno inverno faz crescer a demanda por energia. Para corrigir as distorções, as termelétricas são acionadas, uma vez que fornecem a eletricidade necessária, sobretudo durante a ponta de carga.
Situação de secas no Centro-Oeste e Sudeste também preocupa
Não é só a região Norte quem está em alerta pela queda no volume dos reservatórios. A estiagem também é preocupação para o subsistema Sudeste/Centro-Oeste, o maior do País.
Segundo informações de julho de 2024 do Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), todas as unidades federativas do Brasil estão passando por algum tipo de seca. Para o órgão, são considerados cinco os graus de estiagem: fraca, moderada, severa, extrema e excepcional.
Pelo menos 11 estados estão passando por um período de "seca extrema", assinalada em vermelho no mapa acima. Em levantamento do Cemaden para o portal g1, 16 unidades federativas atravessam a pior estiagem entre os meses de maio e agosto dos últimos 44 anos.
Com percentuais cada vez mais baixos de reservatórios, a solução tem sido balancear o acionamento de térmicas em momentos críticos, bem como maximizar o uso de demais fontes energéticas, "não havendo risco de desabastecimento de energia", como reforça o ONS.
Confira o nível dos reservatórios dos subsistemas do Brasil (dados de 28 de agosto de 2024):
- Subsistema Norte: 79,74%;
- Subsistema Sul: 67,79%;
- Subsistema Nordeste: 56,78%;
- Subsistema Sudeste/Centro-Oeste: 56,53%
BRASIL: 65,21%
Queimadas são ponto extra de atenção
As queimadas pelo Brasil também pressionam o sistema de energia. Como define Priscila Arruda, pesquisadora do Programa de Energia do Instituto de Defesa dos Consumidores (Idec), combater os focos de fogo pode acabar tirando água dos reservatórios das hidrelétricas.
"As queimadas surgem como uma consequência da seca, não estando relacionadas diretamente com o preço da energia. Evidentemente, o uso da água para apagar as queimadas pode competir com o uso da água para geração de energia, então existe um uso múltiplo da água. A queimada pode levar mais as pessoas a utilizarem sistemas de resfriamento e outros. Usando mais aparelhos, a gente precisa de mais energia", reflete.
Na análise do professor de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Flávio Rodrigues do Nascimento, a contribuição das queimadas para o aumento na conta de energia é indireta, e tem mais ligação com questões ambientais.
"Diria que é um efeito de consequência direta na perspectiva da erosão, mas diretamente a gente não consegue perceber o efeito da queimada. Vai conseguir perceber à medida que a queimada se dá, a vegetação deixa de existir, protege menos o solo, o solo vai ser arrastado e vai assorear os reservatórios e canais fluviais. Daí você tem um problema estabelecido. É um problema interligado de causa direta e indireta", explica.
O especialista ainda acrescenta à questão que o impacto das queimadas no nível dos reservatórios vai muito além de questões diretas, e traz prejuízos em cadeia que levam ao agravamento de períodos de estiagem e diminuição do volume de águas.
"Queimou tem o impacto no solo e assoreia o rio, onde tem hidrelétrica, água pra uso múltiplo. O solo vai ficar desnudo, a temperatura vai aquecer mais ainda, com menos umidade e menos formação de chuva. Se tem menos formação de chuva a nível regional, imagina isso em escala global, com aumento de desmatamento, de queimada. Tem possibilidade de redução de chuvas, consequentemente, isso vai impactar o sistema hidrelétrico, o ONS, que vai precisar acionar uma termelétrica", destaca.
Termelétricas devem continuar sendo acionadas em 2024
Assim como definido pelo despacho da ONS, as usinas que queimam combustíveis para gerar energia devem continuar sendo ligadas neste segundo semestre de 2024, e já se preparam para importar matéria-prima.
A Energia Pecém utiliza carvão mineral importado da Colômbia, que chega por meio do Porto do Pecém. Carlos Baldi, presidente do complexo termelétrico cearense, esclareceu, durante evento de lançamento de estudo para produção de biocarvão, que as usinas geradoras devem continuar sendo ligadas nos próximos meses.
"Temos a expectativa (de ligar a usina) de uma a duas semanas por mês até o final do ano. Inclusive, vai nos permitir trazer mais duas a três cargas de carvão da Colômbia até o final do ano", projeta.
Com capacidade instalada de 720 megawatts, a Energia Pecém pode abastecer, sozinha, 80% da população do Ceará. O presidente do complexo termelétrico pondera que, mesmo com as questões ambientais, a maior parte da matriz energética brasileira é renovável, e as usinas funcionam como porto seguro em caso de questões climáticas, como secas e queimadas.
Ter as térmicas como um seguro é muito importante para o País, até por questões internas como por uma queimada, cai uma linha de transmissão. Às vezes está com expectativa de vento maior, vento não entra. A térmica permite dar essa estabilidade ao sistema.
Para Priscila Arruda, porém, acionar as térmicas não deve ser o caminho adotado quando se há queda no volume dos reservatórios. A especialista diz que é necessário um planejamento de médio e longo prazo para não utilizar a queima dos combustíveis, que intensificam problemas climáticos.
"Essa situação de acionar as térmicas, que são poluentes e mais caras, porque têm o custo do combustível para gerar energia, intensifica as mudanças climáticas, contribuindo para eventos extremos ficarem mais comuns, como secas, enchentes, queimadas, viram um ciclo vicioso que piora, que gera um ambiente cada vez mais prejudicial para um sistema que é muito dependente de hidrelétricas e muito suscetíveis às condições climáticas".
Dependência de hidrelétricas em contexto atual prejudica abastecimento, dizem especialistas
A estiagem, por si, é um "efeito em cadeia", como avalia Priscila Arruda: "eventos extremos têm sido causados sobretudo pela emissão de poluentes que levam às mudanças climáticas, e uma das consequências é o aquecimento global", completa.
"Justamente pelo sistema elétrico ser tão dependente das hidrelétricas, que é uma energia barata, quando ocorre uma seca, vai afetar o nível dos reservatórios e vai impedir em grande medida a geração de eletricidade. Por isso, passa a ser necessário acionar as termelétricas, que queimam combustíveis fósseis, em sua maioria, e são mais caros para a população", afirma a pesquisadora.
Para Bernardo Viana, diretor de regulação do Sindicato das Indústrias de Energia e de Serviços do Setor Elétrico do Estado do Ceará (Sindienergia-CE), o Brasil está passando por um "choque de potência".
Tem muita energia sendo gerada, mas infelizmente no horário errado. Soma-se isso a seca e a condição hidrológica no Norte que está se agravando e o índice dos reservatórios. O pessoal vê muita eólica e solar na nossa realidade do Nordeste, mas a gente depende muito dos reservatórios ainda para manter o preço da energia baixo.
O especialista pontua ainda que as queimadas e a seca mais grave impactam nos reservatórios de água e isso será repassado ao consumidor por meio das bandeiras tarifárias da Aneel.
"Se está tendo queimadas, é também porque não está chovendo o suficiente, o período e o clima estão secos, os reservatórios vão baixando e consequentemente a conta de energia pode aumentar com o acionamento das térmicas, que aí o governo, alguns anos, criou justamente a figura das bandeiras tarifárias para refletir esse custo de operação dos setores elétricos de acionamento de fontes mais caras", declara.
Conta de energia mais cara em setembro?
Em julho, a bandeira tarifária amarela foi acionada pela primeira vez em mais de dois anos. Após melhora na recarga dos reservatórios, a bandeira voltou a ficar verde em agosto. Como a situação só se deteriora, porém a expectativa é de retomada de índices mais caros na conta de luz.
Com o acionamento das térmicas e o menor nível dos reservatórios, é quase dado como certo o acionamento da bandeira tarifária amarela pela Aneel já para o mês de setembro. A agência foi procurada pela reportagem, mas até a publicação ainda não havia se manifestado sobre o assunto. O espaço segue aberto
"Quando a situação fica mais crítica, a Aneel aciona a bandeira amarela, que vai aumentar um pouco o custo da energia justamente para sinalizar para o consumidor pelas hidrelétricas principalmente não está favorável, e é uma tentativa, com o aumento do preço, fazer que o consumidor consuma menos energia", sinaliza Priscila Arruda.
A especialista ainda pontua que, pelo fim do inverno e, consequentemente, de aporte de chuvas em volumes significativos para melhorar a condição dos reservatórios nos principais subsistemas, a tendência é de uma escalada de bandeiras tarifárias, pressionando o preço da conta de energia.
A previsão de que até o final do ano não vamos ter muitas chuvas. Se a coisa escalar da bandeira amarela para as vermelhas 1 e 2, a tendência é de um aumento mais significativo na tarifa, e em um cenário que as tarifas têm crescido a cada ano. É uma perspectiva de encarecimento da tarifa.
O País conta com três bandeiras tarifárias: verde, amarela e vermelha. À medida que a produção de energia vai ficando mais cara no Brasil, esse custo é repassado ao consumidor. A bandeira vermelha conta com os dois patamares, sendo o segundo o mais caro, indicando situação crítica de geração de eletricidade. Os dados são da Aneel.
- Bandeira verde: condições favoráveis. Sem acréscimo no preço da conta de luz;
- Bandeira amarela: condições menos favoráveis. Acréscimo de R$ 1,88 na conta de luz a cada 100 kilowatt-hora (kWh) consumido;
- Bandeira vermelha - Patamar 1: condições mais custosas de geração. Acréscimo de R$ 4,46 na conta de luz a cada 100 kilowatt-hora (kWh) consumido;
- Bandeira vermelha - Patamar 2: condições muito desfavoráveis de geração. Acréscimo de R$ 7,87 na conta de luz a cada 100 kilowatt-hora (kWh) consumido;
O consumo médio de uma casa brasileira localizada na área urbana varia entre 150 kWh e 200 kWh, desde que não haja o uso de ar-condicionado. Caso haja o acionamento da bandeira amarela em setembro, é esperado que a conta de luz fique até R$ 3,76 mais cara, mantendo-se o uso da energia em condições normais.
Qual a solução para a menor dependência de hidrelétricas e térmicas?
Somadas, a geração de energia a partir das quedas d'água e da queima de combustíveis representam 77,2% da matriz energética brasileira, segundo a Aneel. Para Priscila Arruda, a hidrelétrica não pode mais ser a principal opção de abastecimento, justamente pelas variáveis climáticas que diminuem a oferta de aporte hídrico.
"Vamos ter muita alteração no regime de chuvas, o que compromete o fornecimento de energia. Se nosso sistema é baseado em hidrelétricas e, não sendo suficiente, aciona termelétrica, é um ciclo que se retroalimenta. A fonte poluente é acionada para manter o abastecimento de energia, mas piora as mudanças climáticas, o que vai piorar essa questão de recarga dos reservatórios. É uma situação bastante desfavorável", alerta a especialista.
Para Flávio Rodrigues do Nascimento, as bandeiras tarifárias de fato pesam no bolso, mas muito menos do que para o meio ambiente, que está cada vez mais pressionado em virtude da emissão frequente de poluentes.
O custo monetário é elevado, mas o custo ambiental é maior ainda porque está emitindo gases do efeito estufa, está agravando o problema de mudança climática com o uso extremos climáticos.
Uma das soluções é a regulamentação da estocagem de eletricidade no Brasil. Assim como aconteceu no passado com os painéis solares, a China capitaneia o desenvolvimento dos BESS (traduzido para Sistema de Armazenamento de Energia por Baterias), e gradativamente ganha espaço.
O objetivo é aproveitar a produção sobretudo de painéis solares e turbinas eólicas, mas não disponibilizar imediatamente no SIN, e sim guardar para usar quando houver necessidade, a exemplo do que acontece com carregadores portatéis.
De acordo com Bernardo Viana, essa tecnologia, ainda em discussões iniciais, "é uma revolução", e indica um futuro mais viável do que o acionamento de termelétricas, pois se trata do aproveitamento de fontes renováveis e praticamente livres de poluição ambiental.
"A China está produzindo um absurdo, os preços vão continuar caindo e vão ser mais viáveis e. consequentemente. você vai conseguir armazenar o vento e o sol em bateria, e ao invés de queimar óleo diesel, carvão, vamos usar energia solar armazenada durante o dia para gerar durante a noite. Esse mecanismo pode ajudar, mas no momento atual não tem nenhum mecanismo que compense o aumento do preço na conta de energia. A gente ainda vai viver essas oscilações", finaliza.