Investimentos realizados de forma equivocada geram prejuízos multimilionários para o fundo de previdência dos servidores em alguns municípios cearenses e põem em risco a aposentadoria de milhares de pessoas. O assunto voltou à tona no mês passado, quando a Polícia Federal e a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) realizaram operação para desarticular um grupo suspeito de fraudar fundos de investimentos, em 11 estados, incluindo o Ceará.
Segundo a PF, a investigação se originou com informações apuradas na Operação Gatekeepers, de 2018. O grupo criminoso teria sido responsável pela captação e desvio de R$ 239 milhões de 69 Regimes Próprios de Previdência Pública no Rio Grande do Sul, Pará, São Paulo, Minas Gerais, Ceará, Paraná, Amapá, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Maranhão.
Em pelo menos três cidades cearenses, investimentos problemáticos viraram uma grande dor de cabeça. Entre 2015 e 2016, São Gonçalo do Amarante, Crato e Caucaia aplicaram, ao todo, R$ 31,3 milhões da seguridade social dos servidores em fundos de investimentos vinculados à empresa Cais Mauá do Brasil S.A. Estes foram liquidados sem aviso prévio em 2018. O dinheiro dos investidores sumiu.
Incerteza jurídica e administrativa
O prefeito de São Gonçalo do Amarante, Marcelo Ferreira Teles afirma que o rombo deixado pela gestão anterior, do ex-prefeito Cláudio Pinho, gera "incerteza jurídica e administrativa". "Isso pode prejudicar, inclusive, o sagrado direito à aposentadoria dos nossos servidores", comentou.
Ele acredita ser muito difícil reverter a perda milionária. "Aguardamos que os culpados pela fraude sejam punidos na justiça e, por outro lado, estamos fazendo todo o possível para reequilibrar as contas e mantermos o respeito e a confiança de nossos servidores."
A reportagem do Diário do Nordeste procurou o ex-prefeito Cláudio Pinho, mas até a publicação do material ele não atendeu às ligações.
A Prefeitura de Caucaia, em nota, informa que o processo contra os prestadores de serviço e custodiantes dos fundos de investimentos ainda segue sob judice na 8ª Vara da Justiça Federal da 5ª Região.
Já a Prefeitura do Crato foi procurada, mas não se manifestou até a publicação da reportagem.
O que dizem os especialistas
Hulisses Dias, analista CNPI (Certificado Nacional do Profissional de Investimento) e mestre em finanças pela Sorbonne, explica que os fundos de pensão operam com o modelo de gerenciamento do ciclo de vida de aplicações, em inglês Asset Liability Management (ALM). Os ativos são as contribuições feitas pelos participantes e os passivos são os pagamentos de benefícios que deverão ser feitos no futuro aos beneficiários.
Ele explica, então, que o valor presente dos ativos precisa ser igual ou maior do que o valor presente dos passivos para que o fundo esteja totalmente financiado. Caso contrário, há dois casos: se o valor presente dos ativos é menor do que o valor presente dos passivos, o fundo está insuficientemente financiado. Já quando a diferença entre o valor presente dos ativos e passivos está positiva, se diz que o fundo é superavitário.
O analista também lembra que a Resolução CMN 4.994/2022 estabelece os segmentos de aplicação onde os recursos dos planos administrados por Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPC) devem ser alocados. São eles: renda fixa, renda variável, estruturado, imobiliário, operações com participantes e exterior. "A Resolução também determina os limites de concentração da carteira por segmento e emissor."
"Todos os segmentos de aplicação envolvem riscos, principalmente aqueles que não contam com alta liquidez. O segmento estruturado, que envolve cotas de fundos de investimento em participações (FIP) e multimercados (FIM), são investimentos de baixa liquidez e alto risco, logo, o retorno desse investimento é num prazo maior. Realizar resgate antes do tempo pode ocasionar em perdas e fazer com que o plano de pensão fique insuficientemente financiado, demandando o aporte de novos recursos para que se torne plenamente financiado."
A tríplice do investimento: risco X retorno X liquidez
Já o economista, vice-presidente da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais do Brasil (Apimec Brasil), Célio Fernando Melo, afirma que toda relação de investimentos possuem um trinômio: risco versus retorno versus liquidez. Além disso, os investimentos em fundos de pensão possuem metas atuariais que carregam os valores futuros dos benefícios.
"Muitas vezes as metas para cobertura exigem uma parcela de exposição a um risco mais elevado para se obter o retorno necessário para o pagamento dos benefícios."
Ele explica que outra variável de análise de investimentos para os fundos é definida pela maturidade do plano, ou seja, se já está pagando os benefícios, a exposição deve ser menor. "Exposições de risco maiores são possíveis quando não há necessidade de curto prazo de fluxos de desembolsos."
"As exposições de alto risco podem ser necessárias ou parte da estratégia de investimentos, dependendo do retorno e liquidez necessários para honrar os compromissos assumidos. Mas para isso é preciso ter a boa técnica que se discute em tesourarias com avaliação de ativos e passivos e sua avaliação estocástica ou variabilidade dos fundos e seus planos."
Quem orienta e fiscaliza os investimentos públicos
O diretor de Fiscalização de Temas Especiais I da Secretaria de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE), Felipe Ramalho, explica que é o Ministério da Previdência Social (MPS) quem exerce as competências de orientar, supervisionar, fiscalizar e acompanhar os regimes próprios de Previdência Social (RPPS) além de estabelecer parâmetros e diretrizes gerais para seu funcionamento, conforme lei datada de 1998.
"Além do MPS, os tribunais de contas têm competência para verificar a legalidade nas aplicações dos recursos por tais fundos. Assim, destaca-se que o Tribunal de Contas do Estado do Ceará fiscaliza, todos os anos, fundos de previdência dos municípios sob sua jurisdição, bem como as contas de gestão de tais fundos são analisadas e os parâmetros determinados pela legislação para os investimentos são levados em consideração para os julgamentos de tais contas."
Questionado sobre casos em que os municípios acabam tendo prejuízo, como os exemplos de Caucaia, São Gonçalo do Amarante e Crato, se alguém pode ser responsabilizado, Ramalho diz que os ministérios públicos estaduais possuem competência para apurar eventual prática de crime que tenha ocorrido nas gestões desses fundos e que ocasionaram prejuízos ao erário.
Já sobre recorrer do prejuízo, ele também comenta que os fundos dos municípios não só do Ceará, como todos os que se sentiram lesados em alguma transação, podem tentar reaver judicialmente eventuais prejuízos que tenham tido.
"É importante destacar que a Portaria 519/2011 do Ministério da Previdência Social, que dispõe sobre as aplicações dos recursos financeiros dos RPPS instituídos pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, sofreu uma recente alteração, diminuindo a possibilidade da ocorrência de tais prejuízos. Além da Resolução 4.963, de 25 de novembro de 2021, que traz regras mais rígidas na aplicação dos recursos."