'Pagando pra trabalhar': 60% dos motoristas de aplicativos no Ceará já abandonaram atividade

Preço dos combustíveis, que consome até 65% dos ganhos, faz motoristas largarem trabalho

As sucessivas altas dos combustíveis têm pesado no bolso dos trabalhadores em geral e em especial no daqueles que atuam no ramo de transportes. No Ceará, o custo da gasolina é o principal motivo para que 60% dos motoristas de aplicativos tenham deixado a atividade desde o início da pandemia, de acordo com a Associação dos Motoristas de Aplicativos do Ceará.

Gabriel Bruno Viana é um deles. Cadastrado em plataformas como Uber e 99 há cinco anos, ele já atuava como "táxi amigo" antes da chegada das startups.

Com o início da pandemia e a drástica redução dos deslocamentos, Gabriel não conseguiu continuar pagando as prestações do carro financiado e teve de repassar o veículo para um parente.

"No fim do ano, deu uma melhorada e eu consegui alugar um carro pra trabalhar. Quando virou o ano, ainda conseguia continuar pagando, mas com o aumento do combustível e, como o carro que eu rodava era a gasolina, não tava compensando pra mim", relata.

Rodando de domingo a domingo

Ele detalha que a atividade era sua principal fonte de renda e para manter a família rodava de domingo a domingo. Na semana, iniciava às 8h e só parava às 22h. No fim de semana, a carga horária mudava para a noite e madrugada, enquanto no domingo era compreendida entre 12h e 22h.

O ex-motorista ainda revela que o aluguel de um carro para motoristas cadastrados em aplicativo custa em média R$ 600 por semana, custo que se soma ao do combustível, de pelo menos R$ 300 por semana

"Por isso que não compensa pra mim e dei uma parada. Eu ainda tentei rodar de moto no iFood, mas não vigorou pra mim, não deu certo", afirma.

Atualmente, Gabriel está desempregado e em busca de uma vaga para motorista particular. Ele conta que possui formação na área de refrigeração, mas que ainda não conseguiu emprego no segmento.

"Minha esposa voltou a trabalhar vendendo bolo, de forma autônoma também. Aí ela tá fazendo esses bolos e a gente vai levando a vida do jeito que dá"
Gabriel Bruno Viana
Ex-motorista de aplicativo

Deterioração dos ganhos

O presidente da Associação dos Motoristas de Aplicativos do Ceará (Amap), Rafael Keylon, pontua que o gasto com combustível sempre tirou cerca de 50% do ganho dos motoristas de aplicativo, percentual que saltou para até 65% com os aumentos recentes.

"Isso quer dizer que se eu boto R$ 100 de gasolina, até minha gasolina acabar eu só consigo fazer no aplicativo R$ 140, às vezes R$ 135, ou seja, eu recuperei meus R$ 100, mas de ganho fiz só R$ 35", esclarece.

Ele ainda revela que o consumo de R$ 100 em gasolina é o equivalente a cerca de 200 km percorridos, quilometragem de um dia de trabalho.

Keylon aponta que, com o aumento do custo do combustível, algumas corridas fazem o motorista pagar para rodar, como naquelas em que são percorridos 10 km e custam R$ 10.

"Isso é comum em aplicativos como a Uber e 99 com suas promoções. O litro do combustível está custando cerca de R$ 6. Um carro comum faz 10km por litro. Então, daqueles R$ 10 que ele vai ganhar, R$ 6 ele já gastou só pra deixar o passageiro. Dependendo do deslocamento que ele vai fazer de onde tá até onde o passageiro está, a corrida pode sair com o motorista pagando pra trabalhar"
Rafael Keylon
Presidente da Amap

Situações como essa têm obrigado os motoristas a usarem estratégias na hora de decidir aceitar ou não uma corrida, o que acaba refletindo diretamente no tempo de espera do passageiro.

Jornadas exaustivas

Segundo o presidente da Amap, o ganho por corrida gira em torno de R$ 2,5 a R$ 3 ou R$ 15 por hora. "É por isso que os motoristas têm que rodar muito pra ganhar no montante e esperar horários de alta nos preços pra poder escapar", afirma.

Em média, os motoristas do Estado trabalham 12 horas por dia para lucrar cerca de R$ 120.

As longas jornadas de trabalho ainda têm acarretado em diversos problemas de saúde aos motoristas, desde dores de cabeça, gripe e problemas relacionados à insolação, até dores nas articulações e doenças gastrointestinais pela falta de ingestão de água, por exemplo.

Keylon aponta que a associação orienta os motoristas a tirarem pelo menos um dia de folga na semana, geralmente entre terça e quinta-feira, dias considerados mais fracos.

"A gente fez um levantamento que mostrou que sete em cada dez motoristas se queixam de dores de cabeça, tosse seca ou gripe por causa de problemas relacionados ao calor. É muito comum você encontrar um motorista de aplicativo e perceber que o braço esquerdo dele está mais bronzeado que o direito", indica.

Para tentar melhorar a qualidade de vida dos motoristas, a Amap está negociando parceria com operadoras de saúde e clínicas populares. A ideia é oferecer um plano de saúde corporativo a baixo custo.

Conforme o presidente, o objetivo é que o valor mensal a ser pago gire em torno de R$ 50 a R$ 60 e que os planos já estejam disponíveis a partir de outubro deste ano.

"A gente passa por uma crise financeira grande que o mercado ainda não se recuperou pra absorver todas as pessoas em empregos formais. Então, alguns motoristas têm que ficar no aplicativo, porque é isso ou nada", conclui.

Busca por alternativas

Júnior Oliveira é um dos motoristas que permanecem na atividade por necessidade. Também cadastrado nas plataformas há cerca de cinco anos, ele começou a rodar para complementar a renda, mas o ofício acabou virando a renda principal.

"Era o perfil da Uber quando começou: era um complemento de renda. Muitos motoristas começaram dessa forma. Hoje está uma sistemática que muita gente usa realmente como uma renda principal", destaca.

Segundo ele, além do próprio aumento dos combustíveis, a falta de reajuste das tarifas dos aplicativos tem dificultado bastante a atuação.

Para conseguir manter a família, formada por ele, pela esposa e pelo enteado, Júnior trabalha de 10 a 12 horas por dia e com uma margem de lucro bem reduzida em comparação a anos anteriores.

O motorista revela que está sempre em busca de outras alternativas melhores, mas que tem tido dificuldades para se recolocar no mercado de trabalho. 

Uma das saídas de melhor rentabilidade são viagens para outros estados. No entanto, a demanda por esse tipo de serviço ainda é irrisória.

"Tá muito complicado se manter na plataforma hoje, pelo fato das empresas não realizarem reajuste de tarifa, que estão defasadas há um bom tempo e o valor dos combustíveis, tanto gasolina como etanol e até mesmo o gás natural não acompanha essa tendência", ressalta.

Resposta das empresas

Em nota, a Uber informou que "tem intensificado seus esforços para ajudar os motoristas parceiros a reduzirem seus gastos, com parcerias que oferecem desconto em combustíveis, por exemplo, assim como tem feito uma revisão e reajustado os ganhos dos motoristas parceiros em diversas cidades".

O comunicado revela que em Fortaleza a tarifa foi reajustada em média em 10% na semana passada e que os parceiros foram comunicados da correção.

Uma das ações da empresa para minimizar o impacto dos combustíveis é disponibilização de 4% de cashback permanente ao pagar com o aplicativo Abastece Aí nos postos Ipiranga.

Sobre o número de motoristas, a empresa apenas pontuou que são mais de 1 milhão de parceiros em todo o Brasil e ressaltou que, por serem profissionais independentes, eles pode ligar e desligar o aplicativo quando acharem mais conveniente.

"Muitos aproveitam essa flexibilidade para encaixar a atividade dentro de sua rotina, aumentando ou reduzindo seu engajamento no aplicativo conforme a necessidade de semana para semana. Globalmente, 34% dos parceiros da Uber alternam a quantidade de horas que ficam online na plataforma de semana para semana em mais de 50%, na média", acrescenta o comunicado.

Já a 99, também por meio de nota, revela que "não registrou alteração no número de motoristas parceiros cadastrados", mas sim um "aumento de demanda pelo serviço, que foi impulsionado por dois fatores: a alta adoção do serviço pela Classe C, que passou a utilizar o serviço durante a pandemia, e o recente retorno das atividades nas cidades, o que tem provocado demora em alguns horários de pico".

A empresa também explica que a tarifa aplicada é variável em até 30%, o que contribui para os maiores ganhos dos motoristas, além de praticarem a chamada taxa negativa, na qual o valor repassado ao motorista é maior que o pago pelo passageiro, diferença custeada pela plataforma.

Também pensando em reduzir o impacto gerado pela conjuntura econômica, a 99 lançou um pacote de ações para o segundo semestre que prevê ações como o repasse integral do valor da corrida aos motoristas parceiros em localidades e horários específicos.

"Esse plano de apoio prevê impactar em mais de R$ 500 milhões o PIB brasileiro, além do valor já gerado pela atividade intermediada pela companhia que, em 2020, foi de R$ 15 bilhões, segundo um estudo da Fipe. Além disso, em 2021, uma parceria da 99 com a Shell já garantiu mais de R$ 3,1 milhões de desconto nos postos da rede em todo o país".