Variáveis econômicas que estão sempre na boca especialistas, como a inflação e a taxa de juros, podem gerar muitas dúvidas quanto à interferência delas no dia a dia. Apesar de abstratas e complexas, a verdade é que elas nos afetam diretamente.
Um dos campos muito ligado a esses dois fatores, por exemplo, é o financiamento imobiliário. Em 2020, quando a taxa básica de juros, a Selic, chegou ao menor patamar da história, a 2% ao ano, os juros cobrados pelos bancos para financiamentos imobiliários também caiu a percentuais muito atrativos.
Segundo o Banco Central (BC), a taxa média de juros das operações de crédito para financiamento imobiliário em abril de 2020 era de 7,22%. As melhores condições potencializaram o sonho da casa própria inerente aos brasileiros e gerou uma corrida por assinatura de contratos mesmo em meio à pandemia.
Naquele ano, foram financiados 426,7 mil imóveis no Brasil, volume 43% maior que o ano anterior, segundo a Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip). Somente no Ceará, foram 7,57 mil unidades, que somaram mais de R$ 2 milhões financiados, marca que não era ultrapassada desde 2014.
O 'boom' do mercado imobiliário se estendeu por 2021, apesar do início da subida da Selic. O prolongamento da pandemia e da crise econômica, do aumento do desemprego e da deterioração da renda, no entanto, colocou em xeque o pagamento dos compromissos imobiliários assumidos.
Concomitante ao sucesso de vendas de unidades que estavam em estoque e que foram lançadas nesse meio tempo, aumentou também o volume de distratos, termo usado quando um contrato é rescindido ou anulado.
Em 2019, a média mensal de distratos no País foi de 1.237, segundo a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). O número subiu para 1.436 em 2019, voltou a cair em 2021 (1.405), e vem apresentando forte elevação este ano.
distratos foram registrados por mês até maio, dado mais recente disponível. O número representa 11,4% do total de vendas do período.
Proporcional ao volume de vendas, o segmento do programa Casa Verde e Amarela é responsável pela maior parte dos distratos dos últimos 12 meses: 73,7%. As unidades de médio e alto padrão correspondem a 22,5%, ainda conforme a Abrainc.
Inadimplência e consequências
Mas afinal, o que pode acontecer quando um proprietário não consegue pagar as parcelas do financiamento?
O diretor do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Ceará (Ibef Ceará), Marcelo Peres, alerta que os imóveis financiados são passíveis de alienação fundiária. Isso quer dizer que, por ser um bem imóvel, a própria unidade é usada como garantia na operação.
Dessa forma, após três meses de atraso no pagamento, a instituição financeira é autorizada a retomar a unidade e levá-la ao leilão.
Em casos extremos como esse, além de perder o bem, o consumidor precisa arcar com os custos do leilão, recursos que são descontados do valor arrecadado com a venda, geralmente muito abaixo da média do mercado.
O consumidor perde o imóvel e perde parte do que pagou, porque vai ter de arcar com advogado, com os custos do leilão, tudo deduzido do valor pelo qual o imóvel foi arrematado. Acaba-se perdendo muito dinheiro"
Para evitar que se chegue a este ponto, Peres orienta que as famílias busquem algumas saídas. Uma delas é a suspensão das parcelas. A medida, criada em 2020, permite a suspensão do pagamento por até 90 dias. Entre as instituições aderentes estão a Caixa Econômica Federal, Bradesco, Itaú e Santander.
Além da pausa, a Caixa está possibilitando a redução do valor das parcelas em até 75% por seis meses. Segundo o banco, os valores não pagos são acrescidos ao saldo devedor e serão pagos pelo prazo restante do contrato.
Quem estiver desempregado e recebendo seguro-desemprego pode solicitar à Caixa uma pausa no pagamento das parcelas de seis meses. O valor não pago no período da pausa é incorporado ao saldo devedor e diluído no prazo remanescente do contrato, de forma que prazo restante será prorrogado e o valor das parcelas, recalculado.
Outra opção, conforme o diretor do Ibef Ceará, é procurar as instituições financeiras e negociar as condições de forma personalizada.
O economista e professor de Economia da Universidade de Fortaleza, Allisson Martins, elenca mais uma saída para quem não está mais conseguindo encaixar o financiamento no orçamento da família.
Ele revela que é possível consultar as taxas de juros de outros bancos e solicitar a portabilidade da dívida para uma instituição financeira que oferece um percentual mais baixo.
"Nos juros de uma operação de crédito, cada ponto percentual é uma pancada no bolso do devedor, porque incide sobre o saldo remanescente. Então, é possível consultar as taxas de outros bancos e levar o financiamento para outra instituição", explica.
Se nenhuma dessas possibilidades for bem-sucedida, Peres indica que o proprietário venda o imóvel e quite a dívida com o banco, tendo em vista a desvantagem financeira e o tamanho da perda caso o imóvel seja retomado.
Organização financeira
Para evitar chegar em situações delicadas como as descritas, o diretor do Ibef Ceará lembra que a compra de um imóvel é uma decisão familiar, que deve ser tomada com muita cautela e após muito diálogo.
"Por ser uma dívida de valor muito alto e muito longa, é preciso analisar muito além do valor da prestação, porque, com o imóvel, virão gastos de energia, água, IPTU, manutenção, que vão comprometer a renda da família", destaca.
O custo benefício da localização ante o valor do imóvel também precisa ser levado em consideração. Isso porque determinados bairros e municípios afastados dos grandes centros costumam ter oferta de imóveis mais baratos.
No entanto, nem sempre a economia compensa o gasto necessário com o deslocamento da família para atividades diárias, como trabalho, escola, entre outros.
"Já vi vários casos de pessoas que compraram imóvel em determinada localização apenas pelo preço e se arrependeram, porque gasta muito mais em combustível, passa mais tempo no trânsito. A pessoa acaba perdendo mais do que se estivesse pagando mais caro em uma região que faça mais sentido para ela", pontua Peres.
Encarecimento do financiamento
Martins também ressalta que é importante ficar atento ao encarecimento do financiamento bancário em função da alta dos juros e em como isso pode modificar de forma significativa os cenários.
Como já mencionado, a taxa média dos juros para financiamento imobiliário em abril de 2020 era de 7,22%, percentual que subiu para 9,41% em abril deste ano, data mais recente disponível.
Essa elevação impacta não só no valor das prestações e no total a ser pago, como na renda exigida pelos bancos e para o equilíbrio financeiro.
A pedido da reportagem, o economista realizou simulações de financiamentos para demonstrar o impacto da subida da Selic e do peso no orçamento.
Os cálculos levaram em consideração o Sistema de Amortização Constante (SAC), regime mais popular de financiamento em que as parcelas vão diminuindo ao longo do tempo, e um prazo de 240 meses.
Um consumidor que tenha pegue um financiamento no valor de R$ 300 mil em abril deste ano, no final do prazo estabelecido, terá pago 12% a mais que alguém que financiou o mesmo valor em abril de 2020.
Além do valor total, as parcelas inicial e final vão ter sido maiores, exigindo uma renda mínima maior.
Confira as simulações:
Além de um controle financeiro bem-feito, Martins aponta que, para manter a dívida em dia e, quem sabe, pagá-la mais rápido, é recomendável que o devedor utilize o FGTS de tempos em tempos para amortizar o financiamento.
Outra dica é contratar um seguro. Dessa forma, quando o consumidor não conseguir honrar o pagamento por algum motivo, o seguro quita a parcela por alguns meses.
O diretor do Ibef Ceará acrescenta à essas práticas saudáveis que eventuais rendas extras que a família consiga, seja o 13º salário ou recursos de alguma atividade adicional, seja destinado à amortização também.
Compra consciente
Apesar da crescente dos distratos, o presidente do Conselho Regional de Corretores de Imóveis do Ceará (Creci-CE), Tibério Benevides, assegura que o cenário ainda não causa preocupação para o mercado.
Segundo ele, uma vez que o financiamento imobiliário é uma operação de crédito longa, as instituições financeiras não estão acompanhando o ritmo de subida da Selic, o que mantém a atratividade. Além disso, ele pontua que os consumidores estão mais conscientes e cautelosos.
"Até 2018, (o volume de distratos) era realmente preocupante. A gente vendia três salas comerciais e distratava seis. Porque, na época, todo mundo achou que ia ficar rico especulando imóvel, mas não tinha comprador", lembra.
Dessa forma, havia casos em que uma única pessoa comprava até três imóveis pensando em vender por valores maiores. Sem conseguir compradores e ter como pagar as prestações, solicitava o distrato.
"Agora, o crescimento é equilibrado, a geração de emprego está voltando, todo mundo quer morar bem. Os empreendimentos de alto padrão que foram lançados no Ceará de 2020 para cá já estão praticamente 100% vendidos, sem falar no segmento de loteamento. Tivemos eventos em que vendemos 300 lotes em uma manhã"
Benevides ainda acredita que o ritmo do setor deve se manter no médio prazo, caso as variáveis macroeconômicas como emprego e renda continuem se recuperando.