Inflação reduz poder de compra de cearenses: 'volto do supermercado só com umas sacolinhas'

No segundo episódio desta reportagem especial, você vai conhecer as histórias de duas mulheres que sofrem perdas com a inflação

Em 1989, a inflação brasileira ultrapassou o patamar de 1.700%. Naquele ano, a dona de casa Maria Helena Dias estava com 19 anos. Ela não se lembra, mas o salário acabava em uma única ida ao supermercado. Os produtos eram etiquetados frequentemente para reajuste de valores na presença dos consumidores.

Foi quando os brasileiros desenvolveram o hábito de fazer compras mensais para evitar as oscilações repentinas. 

O cenário atual de inflação em dois dígitos, claro, não se compara aos índices descontrolados daquele período (entre as décadas de 1980 e 1990). Mas a percepção de que os ganhos não têm tanto valor não passa mais despercebida por Helena, hoje com 52 anos. 

"Sempre que vou ao mercado vejo algo mais caro, todo mês é um valor diferente. Antes, o supermercado precisava vir deixar as compras em casa, agora, é a gente que sai só com umas sacolinhas nas mãos", lamentou. 

Recentemente, as majorações observadas pela Helena foram provocadas por diversos os fatores internos e externos. Dentre eles, questões climáticas, custo do frete com o reajuste dos combustíveis e as demais consequências da guerra da Rússia contra a Ucrânia.

O analista de Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), Daniel Suliano, lembra que o custo dos alimentos começou a acelerar no segundo semestre de 2020, no bojo da retomada das atividades econômicas. 

A situação, todavia, manteve-se ao longo de 2021. No primeiro trimestre deste ano, o conflito no Leste europeu de mais fôlego à alta generalizada. 

“Quando se considera a aceleração dos preços alimentícios, os dois países são grandes produtores de trigo, umas das principais commodities desse segmento. É o clássico choque de oferta que atinge a economia, com a redução do produto e a elevação do nível de preços”, esclarece. 

O professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e PhD em Desenvolvimento Regional, Lauro Chaves, recorda que o contexto pandêmico "desestruturou uma série de cadeias logísticas e de suprimentos".

“Em seguida, veio a guerra e tivemos uma desestruturação nesse mercado a um nível global”, aponta. Diante do cenário, os economistas avaliam que as elevações irão persistir ao longo de 2022.

Daniel pondera, contudo, que deverá ser inferior à taxa de 2021. No ano passado, o Brasil atingiu o maior patamar desde 2014. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), considerado a inflação oficial do país, acumulou em 10,06%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O coordenador de Pesquisa e Incidência em Justiça Social e Econômica do Comitê de Oxford para Alívio da Fome (Oxfam Brasil), Jefferson Nascimento, expõe que, além do cenário global, a escalada inflacionária foi puxada por condicionais locais. 

“Houve um aumento da cenoura provocado pelo excesso de chuvas nas regiões produtoras e isso acaba encarecendo”, exemplifica, acrescentando que as condições climáticas também subiram o custo do tomate, entre outras culturas agrícolas.  

“Então, não temos uma perspectiva de melhora no curto prazo desse cenário. Isso, infelizmente, vai impactar as famílias de mais baixa renda”, observa.

O que pode ser feito para reverter a inflação?

O analista de Políticas Públicas do Ipece, Daniel Suliano, explica que controle da inflação é uma responsabilidade do Banco Central (BC), autoridade monetária que evita a disparada de valores utilizando a taxa de juros Selic como medida mitigadora. 

"Nesse contexto, o BC tem como horizonte relevante a inflação futura, evitando que os preços sigam uma inércia (persistência contínua de aumento futuro a partir do aumento passado)", analisa. 

"Portanto, nessas altas decorrentes de fatores não controláveis há pouco a ser feito. Conforme dito, são choques que atravessam a economia diante de situações adversas", afirma. 

Entretanto, o coordenador de Pesquisa e Incidência em Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil, Jefferson Nascimento, acredita que o fortalecimento dos estoques reguladores públicos de alimentação poderia reduzir o impacto dos aumentos para as famílias.  

“A capacidade que o estado brasileiro tem de responder a essas grandes variações de valores dos alimentos foi reduzida ao adotar-se uma política de desmonte da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)”, cita o programa de segurança alimentar e nutricional baseado na compra da agricultura familiar. 

Mesmo sendo líder na produção global de alimentos, a partir de 2017, os estoques de algumas dessas produções zeraram na Conab, incluindo o feijão, a mandioca e o café. 

Também houve perdas expressivas do armazenamento de arroz e do milho. Sem essas reservas, o País fica refém das importações e das oscilações cambiais

“Estão baixos os estoques de itens que serviriam para contrabalancear o valor de alguns produtos que compõem a cesta básica do brasileiro”, enfatiza. 

“Essa é uma ferramenta interessante para fazer algum controle para ajudar a regular o preço desses alimentos, mas é um mecanismo que não possuímos mais por conta de uma decisão política”, argumenta. 

Diário do Nordeste pediu esclarecimento sobre o caso ao Ministério da Cidadania e aguarda resposta. 

A despensa também está esvaziando 

A dona de casa Maria Helena Oliveira Dias, de 52 anos, citada no início desta reportagem, relata que a inflação dos alimentos tem corroído duramente a renda familiar. Os 20 kg de arroz por mês tiveram de ser reduzidos para 12 kg.

A diminuição também começou a ocorrer com o feijão ( de 5kg para 4kg) e o café (de seis pacotes para cinco). 

"A cesta básica é muito alta para o tanto que a gente ganha. A inflação está lá em cima", diz. 

Na casa dela, moram a mãe, de 73 anos, o filho, de 19 anos, e o irmão, de 47 anos. Além da aposentadoria de um salário mínimo da idosa, o orçamento tem o incremento da renda extra com a venda de trufas, de roupas usadas em um brechó e um armarinho adaptados na área da própria casa. 

Desde o fim do ano passado, contudo, Helena enfrenta dificuldades para incluir a compra de insumos para fabricação dos doces caseiros. "Eu não posso mais fazer porque está tudo muito caro. Se eu colocar uma trufa para vender por mais de R$ 2,50, no meu bairro, ninguém vai poder comprar", calcula.

“Outra coisa é a sardinha e o azeite de oliva, que não estão dando mais para colocar. E a manteiga? Eu comprava a caixa grande, mas agora é a pequena e a mais barata que tiver. Só funciona assim. O dinheiro não dá mais”, constata. 

O filho de Helena foi aprovado no curso de História, da Universidade Estadual do Ceará (Uece), neste primeiro semestre. A dona de casa teme que ele desista diante dificuldades para comprar as passagens de ônibus e os materiais didáticos. "Ele é muito estudioso. Era o sonho dele, mas as coisas estão difíceis, né?", reitera. 

Cearense “aguenta as dores” para economizar remédio 

Sem emprego desde fevereiro, Maria de Fátima Oliveira, de 51 anos, viu a renda de R$ 400, oriunda do Auxílio Brasil, encolher, cada vez mais, nos últimos meses.

“Carne vermelha eu já não compro desde novembro. Mas, agora, a gente tem que botar na balança quantas vezes vai comer, a quantidade e a qualidade. Tudo isso”, lista. 

Maria, que é deficiente visual, está concluindo o curso de Serviço Social e à procura de emprego há meses.

“Por mais que tenha a lei determinando cota de 5%, ainda tem muito preconceito. Eles pensam logo: vai fazer o que se é cega? Existe uma dificuldade enorme e só contratam mesmo porque são obrigados”, questiona. 

O marido também está desempregado. O casal educa uma neta, de cinco anos, com necessidades alimentares especiais. “Também ajudamos outras três netas. Se não fosse a escola, elas não estariam se alimentando bem e com todas as refeições”, narra. 

Maria conta com a ajuda da irmã que paga o último semestre da faculdade, mas precisou trocar as aulas presencias pelas online para reduzir o custo da mensalidade.

Todo o valor recebido pelo programa social é utilizado para comprar medicamentos para o tratamento de fibromialgia e outros que não são concedidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A família se alimenta graças à ajuda da comunidade e de familiares.

Ainda assim, não é o suficiente. 

“Eu não consigo comprar as seis caixas de comprimidos que preciso por mês. Então, compro três para economizar e fico aguentando as dores”, expôs.