No Ceará, há 313 mil desempregados, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual (Pnad). Por trás desse dado, estão mulheres — mães, negras, transexuais e travestis —, jovens de baixa renda, pessoas com deficiência física e tantas outras histórias que os números não contam.
Essa população enfrenta uma jornada extensa e cercada de obstáculos para conseguir uma colocação. Mudar o retrato do mercado de trabalho formal demanda, sobretudo, políticas públicas, mas o setor privado também pode desempenhar um papel importante com programas de inclusão e diversidade.
Neste 1º de maio, o Diário do Nordeste traz as vozes de quem conhece as desvantagens na corrida pelo emprego, seja pela desigualdade de renda, gênero, cor ou pelo capacitismo.
Dentre os relatos, estão pessoas que já conseguiram acessar esse ambiente marcado por privilégios, como a atendente Patricia Dawson, de 36 anos.
Num estado onde a taxa de mortalidade da população trans e travesti é a segunda maior do País, ela teve a oportunidade que nem todas conseguem: integrar uma estatística positiva, sendo uma dos 3,7 milhões de trabalhadores formais do Ceará.
A estudante Kamille Venâncio Rabelo, de 19 anos, é a prova de que a educação muda a trajetória de jovens de baixa renda. Graças ao ensino profissionalizante, ela já saiu do ensino médio com a empregabilidade no horizonte, além de iniciar a formação de nível superior.
Mas também há quem ainda precise reivindicar esse espaço. Diante de um mercado despreparado para a inclusão de pessoas com deficiência, o massoterapeuta Lucas Lima, de 29 anos, teve de recorrer à informalidade, de onde não consegue sair há 10 anos.
Já Natasha Santos, 29 anos, está entre as 279 mil pessoas desalentadas no Estado. Ou seja, gostaria de trabalhar, mas já desistiu de bater à porta das empresas. Ela, que já enfrenta o racismo diariamente, sentiu ainda mais exclusão após ter se tornado mãe.
Dignidade e qualificação para a população trans e travesti
A atriz e atendente Patrícia Dawson, de 36 anos, viu a renda cair no início da pandemia de Covid-19. Logo após o período de isolamento social, ela precisou encarar o temor de sofrer transfobia e começou a procurar emprego no mercado formal.
Apesar dos desafios, encontrou as portas abertas em uma empresa prestadora de serviços para a Defensoria Pública do Estado Ceará, onde hoje trabalha com o atendimento ao idoso.
“Quando vim procurar esse emprego, estava com 35 anos. Já era difícil pela idade, mas aí junta o fato de eu ser travesti e a questão do preconceito. Sempre via como um desafio chegar em um lugar e como iria ser tratada, mas fui acolhida e abraçada”, relata.
Patrícia pondera, no entanto, sobre esse ser um relato infrequente.
“O mercado é difícil para nós. Temos avanços, mas são pequenos diante de uma demanda gigantesca. Muitas de nós acabamos tendo como opção só a rua, ser cabeleireira, manicure. A gente precisa de mais e de qualificação. Podemos ocupar muitos cargos e assumir lideranças”, observa.
“Meu anseio é que as outras também possam acreditar nesses lugares como possíveis. A nossa população está desacreditada sobre isso, mas não está distante. Hoje, aqui, sou eu e mais quatro trans contratadas. O meu trabalho me salva todos os dias”, finaliza.
Ensino de qualidade e profissionalizante para abrir mais portas para os jovens
A universitária e ex-aluna da Escola Estadual de Educação Profissional Governador Luiz de Gonzaga Fonseca Mota, em Maracanaú, Kamille Venâncio Rabelo, de 19 anos, já saiu do ensino médio com o contrato de estágio assinado.
Estagiária de uma multinacional há oito meses, ela aponta a formação técnica como fator crucial para a sua inserção no setor privado.
“Meu ensino profissionalizante foi muito proveitoso. Além da parte técnica, aprendi sobre postura profissional, impulsionando alguns passos da minha carreira. Sinto ter sido bem preparada e tive ótimos professores”, lista.
Para a universitária, corrigir a educação deficitária e ampliar a capacitação ajudaria a multiplicar histórias como a dela.
“Acredito que muitos não tiveram uma boa preparação durante o tempo escolar. Então, as empresas poderiam se reunir em um projeto para agregar mais jovens ao time via treinamentos e cursos”, propõe, além de políticas públicas.
“Com isso, o mercado se tornaria mais acessível para aqueles que estão dispostos, porém, não tiveram estudo para capacitá-los a concorrer por uma vaga. Assim, mais jovens teriam a oportunidade de desenvolvimento profissional”, avalia.
Valorização e inclusão para deficientes físicos
Sem oportunidades no setor formal, o atleta de alto rendimento e massoterapeuta Lucas Lima, de 29 anos, precisou ser tornar Microempreendedor Individual (Mei) para poder contribuir com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Lucas é deficiente visual total. Para garantir o ganha-pão, há dias nos quais o profissional atende até 30 pessoas, gerando desgaste físico e risco de lesões.
“Hoje, sou prestador de serviço devido às dificuldades. Para cumprir as cotas [exigidas pela lei], as empresas procuram as deficiências leves ou moderadas para evitarem gastos com acessibilidade”, destaca.
Segundo profissional, as inúmeras entrevistas de emprego pelas quais passou, nos últimos anos, foram frustrantes. A maioria dos processos seletivos, relata, adotava dinâmicas em grupo excludentes e não proporcionava um ambiente acessível para deficientes.
“Eu sonho com um futuro onde vamos encontrar diversas pessoas com deficiência no mercado de trabalho e não em cargos subalternos e tidos sem prestígio, mas ocupando cargos de chefia”, observa.
“Também sonho com o dia no qual o currículo e a experiência serão colocadas em primeiro lugar, não a condição física. Sonho em sermos incluídos pelo mercado de trabalho pelo nosso potencial, capacidade e não para preencher o quantitativo mínimo para não incorrer multas”, enfatiza.
Combate ao racismo, políticas públicas e cultura inclusiva para as mães nas empresas
Natasha Santos, de 29 anos, sofre cotidianamente com racismo. Quando vai ao comércio, por exemplo, é recorrente ser perseguida pelos olhares desconfiados dos seguranças. Ela sabe bem que ser uma mulher negra ainda é viver sob opressões.
Em 2020, no auge da pandemia, Natasha engravidou. Sem rede de apoio, não conseguiu voltar ao trabalho de operadora comercial porque precisava cuidar da filha. Após três anos, na tentativa de recolocação profissional, Natasha notou mais um preconceito a ser enfrentado diariamente.
“Antes, já era difícil, mas, quando você se torna mãe, complica ainda mais. Sinto que as empresas dão prioridade a pessoas sem filhos. Outra coisa é que, além das perguntas básicas, ainda ouvimos questionamentos como: com quem você deixará seu filho caso ele fique doente?’, exemplifica.
“São necessários mais auxílios paras as mães que querem voltar a trabalhar, como creches. Não considero certo esse tipo de pergunta feita em entrevistas, por caber à mãe saber o que fazer. Deveriam oferecer ajuda e não julgar. Outra coisa é contratar a pessoa pelo que ela é, não pela cor”, aponta.
Devido à inflexibilidade do mercado formal — o qual ela já desistiu temporariamente de entrar-, Natasha hoje faz renda extra com recreação em festas de aniversários infantis, mas somente aos fins de semana, quando a mãe pode ficar com a filha.