Com o recorde de queimadas e temperaturas inéditas documentadas, a emergência climática se tornou tangível e, principalmente, visível. A proximidade de um ponto de não retorno, em que a dinâmica do sistema climático não pode ser restaurada, levanta debates sobre o que está sendo feito, por exemplo, para reduzir a emissão de poluentes e a degradação de recursos naturais.
A agropecuária, por exemplo, é a segunda maior responsável pela emissão de gases do efeito estufa no Brasil, atrás apenas da mudança de uso da terra (desmatamentos e queimadas, que também estão associadas à produção agro), segundo o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG).
Paradoxalmente, as produções podem ficar comprometidas com os eventos climáticos. As dificuldades podem ficar ainda mais fortes no Ceará, que tem mais de 90% do seu território com clima semiárido - 175 dos 184 municípios, segundo a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).
Na tentativa de sobreviver ao clima, iniciativas públicas e privadas buscam mudar a produção cearense. Essa tentativa é abordada na primeira reportagem da série 'Construindo o Futuro', que mostra como diversos setores produtivos do Ceará estão lidando com a emergência climática e trabalhando para reduzir o impacto socioambiental.
Desafios do agro
O risco de desertificação em algumas regiões cearenses intensifica os desafios do setor agropecuário, destaca o professor Magno José Cândido, integrante do Programa Cientista-chefe em Agricultura do Governo do Estado do Ceará.
“Temos visto eventos climáticos extremos ocorrendo cada vez com mais intensidade e frequência, a exemplo da grande seca de 2012 a 2017 que assolou nosso estado, das enchentes no sul do país e agora mais recentemente das queimadas. O desafio da previsão climática, que sempre foi muito grande no semiárido, tornou-se ainda maior, pois o clima está ficando cada vez mais imprevisível”, afirma.
Para reduzir os riscos de perder ainda mais produtividade, é necessário se aprofundar em técnicas de mapeamento e monitoramento das áreas e da capacidade de uso das terras, explica Cândido. Nos ínfimos 5% de área agricultável com possibilidade de irrigação, é necessário investir na utilização de água biosalina e água de reúso.
Já na produção de sequeiro, é necessário utilizar plantas adaptadas à vegetação da nova caatinga. É nisso que aposta o programa ConectSAFs, que visa promover segurança alimentar e sustentabilidade ambiental com sistemas agroflorestais.
A iniciativa nasceu na Universidade Federal do Ceará (UFC) e recebeu posteriormente apoio da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará (Ematerce). O objetivo é instalar 1.500 sistemas agroflorestais em diversos municípios, substituindo a vegetação degradada das proximidades de rios do Ceará.
O plantio de espécies nativas do Estado, como o cajá, será feito pela agricultura familiar. As famílias poderão aumentar o orçamento com a venda dos produtos, à medida em que auxiliam no reflorestamento, aponta o professor Alexandre Gomes Costa, um dos responsáveis pelo estudo.
“O produtor pode usar plantas que vão fazer retorno daqui a onze anos, plantas arbóreas para vender madeira, ou produzir plantas que daqui a 20 dias faz a colheita”, explica. A expectativa é que, a longo prazo, o programa viabilize o aumento do estoque de alimentos e fortaleça a segurança alimentar dos cearenses.
Um impacto indireto, que é alvo de estudos mais aprofundados pelo pesquisador, deve ser a recuperação de reservatórios hídricos do Estado, essenciais para o ecossistema. A recomposição das matas ciliares deve evitar o assoreamento dos rios e açudes, fenômeno que leva à perda de capacidade de água. A estimativa é que o Estado perca 2% da capacidade hídrica a cada dez anos.
O objetivo é que se tenha produção, para atender pessoas que precisam dessa agricultura para viver, mas que tenha um foco conservacionista. Ou seja, fazer com que se diminua a erosão para evitar o assoreamento dos açudes. Muita gente fala que antes os açudes não sangravam como hoje em dia. É claro, porque agora a capacidade de armazenamento é menor.
Os primeiros sistemas agroflorestais devem ser implantados pelo governo, para testar o modelo e criar referência, e posteriormente pelas famílias produtoras. Alexandre aponta que também seria interessante a adesão dos grandes produtos da iniciativa privada.
"Isso não compete com o sistema tradicional de agricultura intensiva, como, por exemplo, grão de soja, de milho. Ninguém vai impedir que se faça isso. [...] Mas não vale a pena querer ter muito mais produções de milho se ninguém vai estar vivo para comer, porque vai acabar o sistema”.
O estímulo à implantação de sistemas agroflorestais é uma das medidas destacadas no ABC+CE, plano estadual da Secretaria de Desenvolvimento Agrário (SDA) de adaptação à mudança do clima e baixa emissão de carbono na agropecuária. O planejamento converge com a política federal ABC+.
Segundo o governo federal, a proposta é reduzir 1,1 bilhão de toneladas de CO2 até 2030 no setor agropecuário brasileiro. No segmento estadual, o programa reúne vinte instituições governamentais e convidadas.
São 76 projetos para o período de 2023 a 2030, entre concessão de linhas de crédito para pequenos, médios e grandes produtores, sistemas irrigados, redução de vulnerabilidade no campo e controle e diminuição de queimadas no campo.
Defensivos biológicos para reduzir o impacto de grandes produções
Apesar da importância das novas formas de produção agrícola, uma real redução dos impactos do setor perpassa por adaptações das grandes culturas. Ainda há um longo caminho a ser percorrido pelo agronegócio, já que as práticas agrícolas predominantes ainda estão defasadas no tempo, explica o pesquisador José Sousa Lemos.
"Prevalecem as práticas agrícolas que propiciam baixas produtividades da terra e, em decorrência, baixa renda para os agricultores. As iniciativas voltadas para prover sustentabilidade na produção agrícola em qualquer nível de escala, preveem incondicionalmente os incrementos da produtividade da terra e da renda", aponta.
Como o Estado está inserido no regime do semiárido, a produção precisaria de melhores padrões tecnológicos para se tornar resiliente às instabilidades pluviométricas que são a regra no estado.
Produtividade de grãos do Ceará é a terceira pior do Nordeste
O especialista aponta que falta assistência técnica principalmente aos pequenos produtores, que perdem produtividade após o fim da quadra chuvosa e passam boa parte do ano com baixa renda.
Em relação aos grandes negócios, a intervenção governamental não é essencial, mas incentivos fiscais poderiam estimular o desenvolvimento tecnológico das lavouras ou plantéis de criação, segundo Lemos.
Pensando em reduzir seus impactos, a Agrícola Famosa, a maior produtora de melões do Brasil, sediada na divisa entre o Ceará e o Rio Grande do Norte, foi pioneira na região na substituição dos agrotóxicos por defensivos biológicos.
A defesa de pragas e doenças nas fazendas de melão é realizada por micro e macro organismos biológicos cultivados em laboratório ou insetos predadores. A tecnologia foi inspirada em práticas adotadas no Quênia.
"A gente não coloca no solo uma gota de fungicida ou inseticida químico. O solo é 100% biológico. Já na parte aérea, a defesa biológica é muito forte na parte de pragas e um pouco menos no controle de doenças", explica Richard Muller, agrônomo responsável.
Richard aponta que os defensivos naturais são mais econômicos e mais eficientes que os agrotóxicos. O custo para realizar um controle biológico é menos da metade que o de um controle convencional. A Agrícola criou uma empresa especializada no controle biológico, viabilizando a comercialização para outras produtoras.
A diminuição do uso de agrotóxicos é um dos tripés da Agrícola Famosa para o desenvolvimento de uma agricultura regenerativa. O principal ponto é a regeneração do solo, a partir da introdução de matéria orgânica para enriquecer novamente a terra.
A empresa aposta também na irrigação controlada, diminuindo o consumo de água pela metade nos últimos anos. Já para tentar reduzir o consumo de combustíveis fósseis, a empresa adota há doze anos a pulverização por drones, substituindo tratores.
Melhoramento genético na pecuária
A tecnologia também pode auxiliar na diminuição das emissões de gases poluentes pela pecuária. A partir de melhoramento genético, um projeto da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Ceará (Faec) em parceria com o Sebrae busca aumentar a produção de leite do estado e diminuir a quantidade de animais.
O projeto de fertilização in vitro deve ser executado até 2026 em três mil pequenas e médias propriedades leiteiras. A tecnologia permite um salto genético de até sete gerações e o aumento da produtividade dos animais.
"Se esse animal produz 30 litros de leite, você não precisa ter dois animais que produzem quinze litros. São menos dejetos sendo gerados, menos emissão de metano por esses animais", defende Josias Lima, analista da Área Animal da Faec e gestor do projeto.
A utilização da tecnologia para a bacia leiteira nessa escala é inédita no Nordeste, segundo Joias. O laboratório fornecedor da tecnologia é cearense, localizado em Iguatu.
Os produtores devem ter redução de custo na criação dos animais. Em contrapartida, devem atender a alguns requisitos, como melhorar a qualidade de alimentação, a ambiência e o bem-estar dos animais.
"Para se ter uma ideia, o produtor gastaria por prenhez em torno de R$ 3 mil, considerando os gastos de protocolo hormonal, produção dos embriões, veterinário, deslocamento. No nosso projeto, ele vai gastar R$ 480,50 por prenhez já confirmada e diagnosticada", afirma o analista.
O pesquisador Magno José aponta que a produção animal cearense tem grande capacidade de avanço, mas pondera que, além dos desafios crescentes de previsão climática, há uma dificuldade cultural de engajamento dos produtores.
"Nosso agricultor sempre espera muito pelo poder público e tem uma dificuldade histórica de trabalhar em cooperação. Agora mais do que nunca, é necessário o cooperativismo entre os produtores rurais, especialmente os pequenos, venda de produtos com mais qualidade e mais valor agregado e para troca de e experiências tecnológicas", defende.
Fertilizantes made in Ceará
Outra iniciativa promissora para a produção agrícola do Estado é a substituição de fertilizantes convencionais por um biocarvão feito de bagaço do caju. O projeto nasceu no Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Ceará (UFC).
O biocarvão é um material produzido a partir da carbonização de diferentes tipos de biomassas, como resíduos agroindustriais, resíduos de podas de árvore e até tratamento de esgoto. Na prática, há um reaproveitamento de dejetos.
Os pesquisadores descobriram o potencial hidroretentor do material produzido a partir dos resíduos da cultura do caju, ou seja, a capacidade de aumentar a disponibilidade de água para as plantas.
Foram verificados benefícios principalmente em solos coesos, presentes em vasta área dos tabuleiros costeiros, explica Mirian Gomes Costa, uma das pesquisadoras do estudo. Nessas regiões, há plantios de culturas perenes e culturas anuais.
"Um solo que tem a característica física de ter essa coesão, principalmente quando está seco, dificulta o desenvolvimento das plantas. Foi observado um efeito muito positivo da aplicação de doses desse biocarvão, ele favoreceu atributos físicos do solo, questões de retenção de água e oferta de nutrientes para as plantas", aponta.
A pesquisadora ressalta o potencial sustentável da prática, já que há reutilização da solução residuária de hidroponia e digestato, dois subprodutos de processos agroindustriais que seriam descartados sem controle no ambiente.
Se utilizado em larga escala, o potencial fertilizante poderia ainda acabar com a dependência externa de produtos convencionais.
"As fontes convencionais são limitadas, como de fertilizantes fosfatados, nitrogenados e potássicos. De certa forma, nós temos até uma dependência externa em relação a esses insumos. Então com essa proposta de utilizar biocarvão proveniente de resíduos diversos, estamos buscando uma fonte alternativa desses nutrientes na agricultura".
Segurança alimentar de pequenos produtores
Tornar a produção agrícola mais sustentável significa também garantir segurança alimentar adequada aos pequenos trabalhadores. Essa é uma das missões do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador e à Trabalhadora (Cetra), que já ofereceu assessoria a mais de 144 mil trabalhadores em todo o Estado.
A instituição atua em diversas frentes, com a instalação de tecnologias sociais, como cisternas e fogões ecológicos, a realização de feiras agroecológicas e o fortalecimento de articulações entre os produtores.
Luis Eduardo Sobral, coordenador técnico do centro, explica que há um esforço para mudar a mentalidade de produção dos pequenos agricultores em direção a uma socioeconomia. A assistência busca estimular que as famílias produzam diferentes tipos de alimentos, garantindo o bem-estar.
"Famílias de produzem só uma cultura, como por exemplo o caju, têm uma renda elevada, mas podem não ter uma segurança alimentar boa. E são dependentes daquelas espécies, que sofrem sazonalidade de preço e de produção. Os agricultoras familiares precisam buscar a diversidade de atividades, porque se complementam", explica.