Autonomia econômica transforma realidade de vítima de violência doméstica: 'Me salvou'

Alerta: o conteúdo desta reportagem tem descrições de cenas de agressões e pode conter gatilhos emocionais, sobretudo para pessoas que já vivenciaram um contexto de violência doméstica

As mãos trêmulas sobre a mesa dizem muito sobre o peso que a conversa terá a partir dali. O olhar entrega, antes mesmo das primeiras palavras trocadas, as décadas de sofrimento vividas por aquele ser humano, recheadas de todos os tipos possíveis de violência: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. A voz é doce e a postura é, de alguma forma, arredia — algo perfeitamente compreensível vindo de alguém que ainda tem o medo como companhia constante.

Mesmo com a leitura prévia da linguagem corporal indicando a dor no conteúdo daquela entrevista com Jovita*, de 55 anos, os relatos surpreendem a todo instante pela perversidade do agressor, pela resiliência de Jovita e pela crueldade de toda uma sociedade que, de alguma forma, a privou de uma vida de serenidade e paz. Nem mesmo hoje, longe desse contexto de violência, ela conseguiu alcançar essa serenidade. Os traumas ainda são muitos. Latentes. A perseguição ainda existe.

Jovita casou aos 18 anos. Assim como em muitos outros casos, antes do casamento, o agressor não dava qualquer sinal de violência. Bastaram três meses, porém, para xingamentos começarem a ser proferidos, além de violência física. Ele a proibiu de terminar o ensino médio e a fez deixar de trabalhar. Queria que ela engravidasse quanto antes.

Seis meses de casados. Jovita engravidou. E as agressões não cessaram. “Ele me batia, mesmo eu estando grávida. Ele me batia muito, muito, muito. Quando eu cheguei da maternidade após o nascimento do meu filho, ele me deu uma surra e eu voltei para o hospital”. A mãe de Jovita, horrorizada com aquela situação, se afastou da filha. Era tudo que o companheiro da vítima queria: vê-la isolada, sem emprego, sem família ou amigos, tendo apenas ele por perto.

Quando o filho foi crescendo, Jovita conseguiu ir montando aos poucos um negócio. O companheiro, controlador, até deixou. Ele chegou a largar o próprio trabalho para ajudar no negócio dela, que prosperava. Mas as agressões não paravam - e elas aconteciam, inclusive, dentro do ambiente de trabalho.

Eu estava atendendo os clientes e ele puxava o meu cabelo e me arrastava dentro da loja”.

Dentro e fora do negócio, o companheiro de Jovita a agredia. E usava o que podia para continuar exercendo controle sobre a vida da mulher. Esse controle era fortalecido pela falta de apoio da família de Jovita. "Diziam que eu ia ficar falada se ficasse sem marido".

O agressor era sádico: já havia ameaçado incendiar Jovita e os filhos, já havia prometido matá-la de várias maneiras e se matar em seguida. Dava uma surra na mulher e depois a obrigava a se ajoelhar e pedir perdão.

Era faca debaixo do colchão, debaixo de sofá, dentro das gavetas das roupas. Eu não acreditava que ficaria viva para ver os meus filhos crescerem. Eu apanhava muito, muito”, lembra Jovita.

Jovita estava enfraquecida. Não tinha forças para sair daquele relacionamento. Ao longo de toda a sua trajetória de sofrimento ao lado do agressor, foram dezenas de boletins de ocorrência. Ele a fez retirar todos, menos um. Para os vizinhos, ela não prestava porque “apanhava e continuava com ele”. Na delegacia, os policiais, que deviam conferir proteção corroboravam. Ela passou a acreditar que, de fato, sua própria vida não tinha valor.

Violência física também acompanha violência patrimonial 

O companheiro a trocou por outra. Ele a obrigou a assinar o divórcio deixando todos os bens do casal para ele. Disse que, se ela não o fizesse, ele a mataria. Por medo, ela abriu mão da loja que construiu em nome da paz. Mesmo assim, ele não parou de infernizá-la. Jovita era perseguida. Quando o ex-marido a encontrava na rua, a agredia.

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Na frente do juiz, na hora da separação, o homem prometeu pensão para o filho menor. Longe da justiça, a conversa era outra. “Depois, ele disse para mim que não ia pagar e queria que eu voltasse para ele. Eu não queria voltar e ele disse: ‘pronto, eu não vou lhe pagar e se você vier atrás de pensão eu lhe mato’”.

 Eu não tinha expectativa de vida, não vou mentir. A Casa da Mulher Brasileira, o setor de autonomia econômica da casa me salvou. Eu achava que eu ia viver a minha vida toda daquele jeito, que eu tinha nascido para viver assim. Tudo parece estar perdido, mas não está. Está perdido se a gente continuar vivendo com o agressor”, diz Jovita.

Com os filhos mais velhos e após anos sofrendo perseguições e agressões, resolveu fugir com o filho menor. Mudou de cidade sem dizer a ninguém. Tentou silenciar o medo de não ter como se sustentar e sustentar a si e a criança. Seguiu a sua intuição e alguns poucos conselhos de que, se ali ficasse, o ex-companheiro a mataria.

Ao mudar de cidade, conheceu a Casa da Mulher Brasileira, onde se permitiu sonhar novamente. O equipamento existe no Ceará há seis anos, tendo iniciado em parceria entre o Governo Federal e o Governo do Ceará. Hoje, é mantido pelo executivo estadual, sendo vinculado à Secretaria das Mulheres do Estado. Dentre os vários setores da casa, o de autonomia econômica busca profissionalizar e inserir mulheres em situação de violência no mercado de trabalho.

Mais de 22% das vítimas de violência doméstica no Ceará exercem trabalho de cuidado não remunerado 

Assim como Jovita foi criticada inúmeras vezes, outras vítimas de violência doméstica são questionadas sobre o porquê de não abandonarem o agressor ao primeiro sinal de violência. Esse discurso simplifica o encarceramento psicológico e econômico vivenciado pelas mulheres, provocando isolamento e insegurança para buscar ajuda.

A sociedade patriarcal as faz se sentirem incabíveis neste mundo quando, na verdade, não basta a porta estar aberta para se libertar. Os marcadores sociais de cor e classe social agravam ainda mais a situação. Muitas entram nos relacionamentos abusivos já feridas e vulneráveis devido ao contexto familiar e socioeconômico.

Segundo o Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Ceará (DPCE), 86,3% das mulheres atendidas são negras, 56,7% não têm ensino médio completo, 36% foram violentadas ainda na casa dos pais, 49,9% tem como renda complementar ou única do bolsa família e 73,7% possuem rendimento máximo de um salário.

Do total, 22,77% são donas de casa. Os números comprovam: as vítimas de violência doméstica não precisam somente da segurança pública para se libertar do algoz. A dependência financeira é um dos motivos que silenciam essas mulheres.

Por essa razão, são necessárias políticas públicas combinadas, incluindo medidas econômicas e de inserção no mercado de trabalho. Entre elas, qualificação e capacitação profissional para a geração de emprego e renda.

Culpa e medo de não ter como sustentar os filhos

A defensora pública e supervisora do Nudem, Jeritza Lopes, acrescenta que a dependência financeira e o aspecto psicológico são os dois principais impeditivos para a vítima se desvencilhar do contexto de violência, como ocorreu com Jovita.

“Como elas se sentem culpadas, ficam preocupadas como vão sair da relação sem trabalho porque os agressores ameaçam não pagar pensão para os filhos para dificultar a separação. Elas ficam preocupadas como farão para sustentar 3,4 filhos”, observa.

A autonomia econômica é a oportunidade de uma segunda chance de ter uma nova vida e de romper o ciclo da violência. Por isso, essa uma política pública fundamental, incluindo a reinserção no mercado de trabalho”, completa.

A defensora lembra que, assim como a Jovita, citada no início desta reportagem, muitas mulheres são obrigadas a abandonar os empresas de carteira assinada e são impedidas de trabalhar fora.

“Por isso, a autonomia econômica é uma possibilidade delas viveram uma vida sem violência. Essas mulheres precisam dessas oportunidades porque foram tiradas do mercado, estão sem renda, desacreditadas e doentes”, frisa.

Defensoria Pública ajuda mulheres com atendimento gratuito e humanizado 

Jeritza Lopes aponta que mais de 70% das agressões são presenciadas pelos filhos das vítimas. “A violência contra a mulher é um crime contra a humanidade, atinge todas as gerações”, avalia. 

Os serviços jurídicos oferecidos pela Defensoria Pública dependem da necessidade de cada vítima, passando tanto pelas assistências nos processos criminais até a articulação para creche para os filhos dessas mulheres.

“A violência domestica não é só a física. Outras formas acabam sendo subnotificadas porque as vítimas não entendem estarem vivendo a violência psicológica, moral e patrimonial”, aponta. No Nudem, explica, a pessoa sai detentora dos direitos para exercê-los, sendo encaminhada para providenciar os processos de acordo com as necessidades. 

“Fazemos essas mulheres compreenderem que estão no lugar de vítima. Muitas chegam aqui com um grau de culpa porque ouviram a vida inteira dos abusadores que o casamento não deu certo porque elas não teriam se adequado e não teriam sido uma boa mãe. Por isso, mostramos para elas que isso não é verdade e vamos desconstruindo essas falas”, esclarece. 

Veja apenas alguns exemplos dos serviços prestados pelo Nudem:  

  • Atendimento psicossocial;
  • Divórcio;
  • Divisão dos bens;
  • Guarda dos filhos;
  • Pensão alimentícia;
  • Investigação de paternidade;
  • Medidas protetivas;
  • Indenização por danos morais;
  • Indenização por injúria, difamação ou calúnia;
  • Articulação para conseguir vagas dos filhos em uma creche (filhos de vítimas de violência têm prioridade);
  • Articulação para moradia;
  • Diálogo com escolas particulares para flexibilizar com os custos de mensalidades ou materiais escolares;
  • Encaminhamento para refazer a documentação (muitos agressores rasgam ou queimam a documentação da ex-companheira) oficiando o cartório para emitir os documentos sem custo;
  • Encaminhamento para a capacitação profissional e vagas de empregos na Casa da Mulher.

Serviço

  • O que é: o núcleo de enfrentamento à violência contra a Mulher da Defensoria Pública do Ceará (Nudem) presta serviço humanizado para as vítimas, podendo ser de ordem jurídica ou não, como alguns casos citados acima;
  • Onde: Rua Teles de Sousa, s/n, no bairro Couto Fernandes, em Fortaleza. O Nudem fica dentro da Casa da Mulher Brasileira;
  • Quando: segunda a sexta-feira, das 8h às 17 horas;
  • Como ser atendida: o atendimento é gratuito e por ordem de chegada. O ideal é levar identidade e comprovante de endereço para o primeiro atendimento, mas a pessoa será atendida mesmo se não tiver a documentação. Os demais documentos serão orientados pela defensora, conforme a demanda para cada caso.

*Nome fictício usado para resguardar a identidade e preservar a segurança da entrevistada.

A reportagem seriada 'Não Basta Estar Viva' foca na autonomia econômica para o enfrentamento à violência doméstica. Neste primeiro episódio, você conheceu a história de Jovita. Nos próximos, conhecerá a trajetória de Bárbara e Joana (também nomes fictícios). Três mulheres que conseguiram recomeçar a vida e voltar a sonhar graças à política pública de autonomia financeira.