Eu não estou lá, mas elas e eles, sim. Não vejo o tempo inteiro as árduas experiências que testemunham como predominantes na vida. Não, eu não os registro. Também não os recebo em casa. Tampouco, tenho notícias em conversas corriqueiras. Mas, apesar do meu deslizante desconhecimento, elas e eles seguem "lá". Na Fortaleza distante.
Nos territórios onde elas e eles estão, sobra gente dentro dos microcompartimentos das microcasas cercadas de fossas abertas. Muitas demandas e pouca renda. Universos de faltas e excessos. Como o de jovens nas ruas. Desejosos que as chances de melhoria de vida sejam tão numerosas quanto às pressões para largarem a escola e irem trabalhar. O papel da casa não têm. Conforto é bem pouco. A vaga na creche só veio depois de muita espera. A criança, antes disso, aprende . É preciso se cuidar só. Não se pode afrontar os adultos, sobrecarregados pelas ausências. Emprego formal, quem tiver, segura.
Eu não estou "lá", na Fortaleza apartada. Nunca ouvi o desabafo sobre a agonia do "não ter", refletido, não sem dor, em "não ser". Eu, sequer, sei se essas pessoas de "lá" imaginam o que os faz despossuídos, enquanto a cobiçada renda segue concentrada nas mãos de poucos. Não me dei conta quando, "lá", a mãe da família cujas duas gerações anteriores também eram chefiadas por mulheres afundou na tristeza feroz. Depressão, disseram. Não testemunhei a agressividade do pai alcoólatra. Desconheço em qual data o grupo de homens armados começou a mandar na área e o conflito mergulhou mais um lar no atoleiro de perdas precoces.
Anônimos
Elas e eles são uma multidão de anônimos, insignificantes aos olhos dos distraídos habitantes do "outro lado" que nunca estão, vão ou desejam ir "lá". Em alguns desses cantos, são chamados de "liderança". Nomenclatura antiga (!)? Em outros, por apelidos e abreviações. Códigos das falas e afetos cotidianos nas áreas desprovidas do básico e agraciada de coragem.
Nas vielas do Bom Jardim, do Vila Velha, do Pirambu, do Genibaú, do São Cristóvão, da Granja Portugal, do Jangurussu? tantos outros "lás". Nos casebres replicados nas comunidades de múltiplos nomes? Pessoas comuns, mobilizadas, diversificam as minguadas chances. Invisibilizadas, essas pessoas ensinam justamente a não desviar o olhar. Encaram o outro de frente. Percebem como humano. Não sei exatamente o que mantém essa motivação. Mas posso imaginar. Se doam, buscam recursos, acolhem, fazem campanhas. Orientam os jovens. Mobilizam as mulheres. Evitam tragédias. Dividem, além da realidade, a oportunidade de acreditar. Por vezes, se cansam. A institucionalidade os ignora. Mas seguem "lá", abrindo brechas. Mediadores de esperanças na urgência do hoje.
Por seus feitos, ganham a memória daqueles cujas trajetórias ajudaram a revirar e, com isso, ludibriaram o caminho da derrota, antes, dado como certa.
Dia desses, tive um pensamento distópico. Se elas e eles desaparecerem, o que seria de nós? De mim, que não estou "lá" e tenho dívidas enormes com essa coragem que transborda humanidade? Esses tempos duros, de aumento de vulnerabilidades, colocam-me em contato com a certeza: se elas e eles sumirem, levam junto a esperança. E fora dela não há vida. Levariam doses significativas de compaixão e interesse fraterno pelo outro.
Mas, elas e eles não somem. Renascem. Na metamorfose replicada nos partos, geração após geração. São sementes e também frutos da resiliência imorredoura exigida nas adversidades. Se elas e eles sumissem, nem eu escreveria, nem você leria, sobre essa cidade da mesma forma. A existência dos mobilizadores da periferia nos dá possibilidades de evoluir. Quem sabe o alcance da cidade-mundo melhor.
Quando penso coisas negativas assim, tento alterar a rota e elaboro planos mais prósperos: desejo que suma o comportamento miserável de quem, por alienação, despreza a existência dos movedores de sonhos. Quem sabe desapareça a perversa desigualdade. Nesse dia, de vida mais justa, eu posso até não estar "lá" para comemorar, mas elas e eles estarão. Isso basta.