Brincar na calçada e encontrar amigos deveria ser parte do desenvolvimento seguro, mas isso não acontece quando a violência se impõe. No Ceará, 3.403 crianças, adolescentes e jovens de até 19 anos foram mortos por arma de fogo em 5 anos, no período entre os meses de outubro de 2016 e de 2021.
Os casos se concentram em Fortaleza e na Região Metropolitana (RMF) com 2.376, ou 69,82% do total de mortos no contexto de violência. As ruas e estradas do Estado foram cenário dos crimes, com 2.450 mortes registradas no período.
Além da Capital, destacam-se no trágico ranking Caucaia e Maracanaú. No Interior, chamam atenção os índices em Juazeiro do Norte e Sobral, sinalizando que a violência contra essa faixa etária se concentra em centros urbanos. Veja os números de mortes em casa município do Estado:
Dentro de casa, 261 crianças e adolescentes tiveram a vida encurtada após disparos. Do período analisado, 3.070 vítimas eram meninos, o equivalente a 90,2% dos casos, e foram 333 meninas mortas por armas de fogo. Os dados estão reunidos na plataforma IntegraSUS da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) e foram analisados pelo Diário do Nordeste.
Antes de chegar a situações extremas de violência, com a perda da vida, essas pessoas compartilham marcadores estruturais como racismo, segregação social e disparidade de gênero. “O perfil de homicídios no Brasil se repete: são jovens, na grande maioria, do sexo masculino, negros e moradores da periferia”, observa o sociólogo Thiago de Holanda.
Durante a pandemia, crianças menores ficam mais expostas às situações de violência, como acrescenta o especialista. “A escola é um fator de proteção, a gente teve um aumento de morte de crianças de até seis anos, porque elas ficam expostas à violência comunitária, ao confronto entre grupos, acertos de contas ou operação policial que possa gerar riscos para essa população”.
Quando o contexto social se soma ao uso de armas por organizações criminosas há ameaça à vida. “Nós vivemos em um contexto de violência armada, diferente de um país em guerra, nós temos confronto. Os territórios mais vulneráveis sofrem com o domínio de grupos armados, facções criminosas e a ação policial se torna mais ostensiva para responder à violência”, aponta.
Consequências da perda
Foi nesse meio que o adolescente Juan Ferreira dos Santos, de 14 anos, foi atingido na cabeça durante um passeio entre amigos na Praça do Mirante, no bairro Vicente Pinzón, em setembro de 2019. “Naquele dia eu pensava em desistir de tudo, mas pensei nos meus outros filhos”, expressa a mãe Tânia de Brito, que convive diariamente com o luto desde então.
Os efeitos da perda e da espera para a resolução do caso despontam na saúde mental dela, que vê sua rotina alterada. “Antes da morte do meu filho eu trabalhava fora e ia para qualquer lugar sozinha. Hoje eu não me sinto capaz, porque minha cabeça não está boa, a demora e o pouco caso que fazem da vida do nosso filho deixa a gente muito angustiado”.
Tânia se sente mais segura na presença do marido e da filha em uma “demora que adoece a gente”.
Vou viver o resto da minha vida sem ver meu filho se formar, construir uma família, porque tiraram a oportunidade do meu filho viver e ter um futuro"
O lamento continua a ser vivenciado por outras mães, como observa Tânia. “A gente luta tanto para não ver outras mães sofrerem, mas acontece de novo. São crianças, adolescentes, são o futuro. Independente da cor, raça, status, dinheiro ou qualquer coisa: é uma vida”.
Juntas, as mães formam o grupo de apoio Mães da Periferia com encontros quinzenais com suporte de psicólogo. “O grupo é de extrema importância, porque mesmo sendo uma dor difícil, estão sempre ali para apoiar e lutar por justiça. Não só para uma, mas para todas. Se fortalecer, justamente, porque é uma dor inaceitável”.
Situação no Interior
Os municípios do interior do Estado perderam 1.027 pequenos e jovens no período analisado - o correspondente a 30,18% dos casos. Juazeiro do Norte, no Cariri, e Sobral, na Região Norte, tiveram os índices mais altos desse tipo de crime.
Em Sobral, novembro começou com a morte do menino Rafael Maia, de 12 anos, atingido por tiros enquanto brincava na calçada com os amigos, como fazia diariamente. “Ele tentou correr, mas, infelizmente, (o tiro) pegou nele”, contou uma parente da vítima que optou por não se identificar.
“É raro uma criança brincar hoje de esconde-esconde, porque hoje o esconder está em ficar dentro de casa contra a violência de lá fora. Não é como antigamente, se esconder atrás de uma árvore ou de um muro, é se esconder da violência”.
Apesar das centenas de registros, este não é o ano mais crítico em relação ao assassinato de pessoas menores de 20 anos. Conforme análise feita pelo Diário do Nordeste, considerando as ocorrências desde 2016, entre janeiro e outubro de cada ano, 2017, com 861 vidas da população infanto-juvenil tiradas por crimes cometidos com arma de fogo tem os maiores índices.
“A gente não pode ter índices que flutuam ao longo dos anos, a gente tem de ter uma queda que se segure para trazer segurança e garantia de viver para a juventude no Ceará”, analisa Thiago de Holanda, que coordena o Comitê de Prevenção e Combate à Violência na Assembleia Legislativa.
Caminhos para segurança
A mudança desse cenário passa por políticas públicas, como assistência social, atenção básica, ensino fundamental e condições de moradias. “A gente não tem um caminho único para reduzir à violência e a gente aposta muito na redução das vulnerabilidades, na diminuição dos riscos que, sobretudo, os jovens podem sofrer com a violência”, reflete.
A reação da sociedade aos crimes também não pode ser de naturalização para que haja mudança no cenário “na medida em que se justifica essas mortes, atribuindo as causas à própria condição da vítima, situações de vulnerabilidade, de drogas e conflitos armados”, observa Thiago.
Ações contra os crimes
A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) informou que utiliza uma metodologia diferente da utilizada pelo IntegraSUS para registro de mortes violentas. De acordo com a pasta, na faixa etária entre 0 e 19 anos, foram registrados 399 homicídios entre janeiro e outubro de 2021, ante 535 casos no mesmo período do ano anterior, uma redução de 25,4%.
Segundo a SSPDS, a redução se deve a medidas para combater os crimes contra essa faixa etária, como a criação de um Batalhão de Policiamento de Prevenção Especializada (BPEsp), que promove "ações de proteção social, com mais de mil crianças e jovens atendidos, além do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd), que "ocorre em escolas públicas e privadas, e já atendeu mais de 600 mil estudantes".
A pasta destaca ainda o trabalho das delegacias de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente (Dceca) e iniciativas como as 324 escolas de tempo integral, das quais "201 são de ensino médio, que se somam às 123 escolas estaduais de educação profissional, que ofertam, ao mesmo tempo, ensino médio e cursos técnicos".
"Outra medida importante é a instalação de equipamentos públicos, que proporcionem lazer e esporte às crianças e adolescentes, respeitando o que está disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É o caso das 161 brinquedopraças existentes no Estado e as 242 areninhas (campos de grama sintética) construídas em todo o território cearense", esclarece o órgão..