‘Nem eu e nem meus filhos existíamos’: cearenses sem documentação ficam sem direitos sociais

A falta de documentos básicos, como a certidão de nascimento, torna as pessoas invisíveis na sociedade e impedem o acesso à educação, saúde e a benefícios. Em Fortaleza, iniciativas atuam para o registro daqueles em vulnerabilidade social

Em meio aos recursos tecnológicos para facilitar a resolução de burocracias, parcela da população cearense não tem acesso ao básico como o registro de nascimento. Sem existência comprovada, escola, atendimento de saúde  benefícios sociais são negados desde o nascimento.

As estimativas populacionais do IBGE mostram que 36.277 fortalezenses nasceram em 2018 e, naquele ano, 1.582 pequenos não tiveram seus nomes registrados em cartórios - o que corresponde à taxa de 4.36%. O cenário se agrava na pandemia.

“Em 2020, é estimado um aumento de 20% da taxa, porque muitas mães não puderam tirar identidade. Alguns perderam o registro de nascimento e não podem tirar RG, a pobreza também aumentou e não podem pagar a 2ª via da identidade”, detalha Régia Delgado, coordenadora do Comitê Gestor de Políticas de Erradicação de Sub-Registro Civil de Nascimento em Fortaleza (COGEMRCN).

Entre maio de 2017 a agosto de 2021 foram realizados 608 registros tardios por meio da iniciativa “Sim, eu existo!”, do COGEMRCN, ligada à Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci).

“São pessoas em situação de rua, famílias que perderam a sua documentação básica, que não tem Bolsa Família ou Cadastro Único, não entendem nem a importância de ter o registro de nascimento e de existir juridicamente”, explica.

Em casa, os pequenos Carlos Eduardo, 7, Ana Talita, 5, Maria Valentina, 2, e Ágata Sofia, de 2 meses, seguram os atestados de existência e garantia de direitos que a mãe, Tamara Zacarias da Silva, só recebeu aos 25 anos.

"Nem eu e nem meus filhos existíamos", resume sobre a situação. “Eu tentei conversar com minha mãe, mas ela não conseguia resolver e aí eu procurei a Defensoria Pública”.

Desde que saiu de Arneirós, no Sertão dos Inhamuns, a jovem não consegue estudar ou ter acesso a benefícios sociais. “Como eu não tinha documento, não consegui me cadastrar (para receber a vacina contra a Covid-19), mas agora eu fiz e estou esperando a liberação”.

Os filhos maiores estavam fora da escola porque, como ela, saíram da maternidade sem a certidão de nascimento. Tamara, então, recorreu ao Conselho Tutelar e foi encaminhada ao serviço da Funci para o registro próprio e, posteriormente, dos filhos.

“Eles vieram na minha casa e levaram ao cartório para fazer o registro para eu conseguir tirar (a identidade). Os meninos estão registrados, estudando, e eu fiz o meu Bolsa Família”, acrescenta.

O “Sim, eu existo!” recebe casos de quem foi abandonado ou entregue para os cuidados de parentes e não são registrados pelos pais biológicos. “A gente costuma dizer que essas pessoas são invisíveis porque não podem ter acesso a nenhum benefício municipal, estadual ou federal”.

O registro de nascimento é a primeira etapa para a cidadania de uma pessoa e quem não é registrado vive à margem da sociedade e não tem direito à nenhum benefício
Régia Delgado
Coordenadora do Comitê de Políticas de Erradicação de Sub-Registro Civil de Nascimento

Os casos são recebidos por meio do canal “Fala Fortaleza” (0800 285 0880 - opção 3) e registrados em tempo real no sistema de protocolo único da Prefeitura. O encaminhamento de pessoas ao serviço da Funci também é feito com apoio de conselheiros tutelares e funcionários de maternidades.

O “Sim, eu existo!” realiza agendamentos para emissão de RGs por meio da parceria com a  Secretaria de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS). “Se precisar de uma entrevista presencial, nós vamos até a família, hoje nós temos um motorista com carro disponível para atender aquelas famílias que não tem condições nem mesmo de ir ao cartório”, comenta sobre o serviço. 

Os casos mais simples levam entre 60 e 90 dias para a conclusão, mas podem levar períodos como seis meses quando a situação exige mais esforço. “Esse é o nosso desafio: tentar com que essas pessoas de extrema vulnerabilidade já façam o registro na própria maternidade, por isso estamos iniciando um monitoramento para que a gente consiga sensibilizá-las”, reflete.

Mãe e filha sem sobrenome

Filha e mãe compartilham os prejuízos da falta de registro formal em Fortaleza: as duas possuem apenas o primeiro nome na certidão de nascimento. Raquel, de 18 anos, e a filha Rakelly, de 4 anos, vivenciam as mesmas negativas na rotina.

"Dizem que não vão aceitar minha filha porque não tem documento e mesmo que no registro tenha só Rakelly não vão passar o remédio para ela e a escola, do mesmo jeito, não aceita", conta.

A jovem foi recebida por familiares aos três anos e não foi registrada com sobrenome por não ter o acompanhamento dos pais biológicos. Rosilene, de 38 anos, que cuida de Raquel desde a chegada na família, explica:

“Consegui registrar só como Raquel mesmo, sem sobrenome. Com isso, ela enfrentou muitas dificuldades, tinha escola que não aceitava botar ela para estudar, porque não tinha um único responsável na certidão dela, mesmo eu dizendo que era eu”.

Para solucionar o caso, Raquel é acompanhada no Núcleo de Atendimento e Petição Inicial (Napi) da Defensoria Pública, onde foi feita uma ação de adoção para uma nova certidão de nascimento ser emitida. Quando a adoção acontece para maiores de 18 anos há jurisprudência do Código de Processo Civil (CPC) e os processos são encaminhados para as Varas de Família.

A jovem aguarda o resultado para conseguir emitir os documentos e só então também dar nome à filha. Rakelly nem mesmo chegou a ir para a creche, porque a mãe sabia não ser possível realizar matrícula sem o documento. O pai da menina será acionado pela Defensoria para o processo de investigação de paternidade.

Por que o registro não é feito na maternidade?

Falta de conhecimento sobre a relevância da documentação básica ainda faz com que mães e pais levem os bebês para casa sem o registro formal. “Algumas vezes as mães não registram na própria maternidade porque querem que o pai esteja presente, muitas entram sem a identidade - e não podem registrar sem um documento legal - as mães querem registrar no cartório mais próximo de casa”, explica Régia Delgado.

O impacto social começa logo quando os bebês precisam dos primeiros serviços públicos como atendimentos médicos. “Muitas famílias vivem em vulnerabilidade e, infelizmente, algumas mães acabam não fazendo o registro. Os filhos começam toda uma vida à margem da sociedade”, contextualiza a defensora pública, Natali Pontes.

Omissão paterna

A Defensoria Pública do Ceará (DPCE) acompanha aquelas pessoas que precisam entrar com ação na Justiça para receber o comprovante de existência perante a sociedade. Neste ano, 260 atendimentos foram feitos para emissão de documento, retificação de certidões e mudança de nome.

218
ações foram judicializadas para corrigir dados no registro de nascimento pela Defensoria Pública em 2021.

“A gente começa o procedimento de confirmar se a pessoa não foi registrada mesmo e encaminhamos para o juiz. Dando tudo certo é lavrado a certidão de nascimento”, explica Natali Massilon Pontes, também supervisora do Napi de Fortaleza.

O acompanhamento é procurado quando não se consegue benefícios como matrículas escolares, atendimento em postos de saúde e aposentadoria. Os defensores públicos também mediam o processo de dar nome aos filhos em que o pai se coloca como contrário ao registro.

"Toda criança que não foi registrada pelo pai, em qualquer tempo, pode buscar o reconhecimento. Na Defensoria a gente tem a possibilidade de realizar o exame de DNA mesmo antes do ingresso da ação judicial”, acrescenta.

Com o resultado em mãos, alguns homens mudam de posição e assinam a certidão de nascimento sem a necessidade de abrir o processo judicial. Se ele se recusar a fazer o exame de DNA, ou mesmo sabendo do resultado, se não registrar a criança, nós temos que entrar com um processo judicial que se chama investigação de paternidade", explica.

Natali Pontes frisa que a decisão judicial se torna determinante nesses casos para garantir o registro, o sustento e as regras para o convívio, e “não só pela questão financeira, mas também a afetiva, que é de fundamental importância para o desenvolvimento da criança”, como destaca a coordenadora.