Má qualidade do sono ligada à rotina de trabalho afetou fisioterapeutas na pandemia; veja relatos

Estudo de pesquisadores da UFC foi publicado em revista científica internacional

Com a pandemia da Covid-19, diversos impactos sociais, econômicos e sanitários surgiram em diferentes regiões do Brasil, onde muitas rotinas de trabalho foram modificadas, especialmente entre os profissionais da saúde. Neste contexto, um estudo de pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) analisou consequências negativas na qualidade do sono de fisioterapeutas devido ao desgaste físico e mental do período.

A pesquisa, publicada pela revista científica Physiotherapy Theory and Practice, constatou alta ocorrência de comprometimento do sono em 86% dos 342 profissionais entrevistados, principalmente entre os fisioterapeutas que atuaram na linha de frente contra o vírus nas unidades de saúde.

Neste cenário, os maiores receios notados pelos pesquisadores no grupo foram: o medo de ser infectado pelo vírus da Covid-19 (48%), a escassez de equipamentos de proteção individual (24%) e a severidade da doença (16%).

De acordo com um dos orientadores do estudo, o professor do Departamento de Fisioterapia da UFC Rafael Mesquita, no caso do coronavírus, os fisioterapeutas exerciam assistências variadas desde pacientes menos graves internados em leitos de enfermaria a pacientes mais graves lotados em unidades de terapia intensiva (UTI).

“Os fisioterapeutas atuam também no manejo do ventilador mecânico naqueles pacientes que necessitam de suporte ventilatório. Durante a pandemia, [a fisioterapia] foi fundamental, uma vez que um dos principais sinais e sintomas da Covid-19 é a insuficiência respiratória, sendo o suporte ventilatório uma das principais estratégias de tratamento, e a grande maioria desses pacientes apresentava problemas físico-funcionais durante e após a internação”, disse em entrevista à Agência UFC.

Conforme o docente, os resultados da pesquisa indicam a necessidade de maior atenção à saúde mental dos profissionais. “Sugerimos intervenções psicológicas para o enfrentamento de problemas e preocupações; educação continuada para o treino no uso de medidas de segurança durante o atendimento ao paciente, minimizando o risco e o medo de contaminação; garantia de intervalos de descanso entre os turnos”, entre outros.

Linha de frente

A dificuldade das novas rotinas de trabalho durante a pandemia foi notada ainda pelo fisioterapeuta intensivista e coordenador da equipe de Fisioterapia UTI do Hospital e Maternidade Dra. Zilda Arns Neumann, também conhecido como Hospital da Mulher de Fortaleza, Roni Rodrigues.

Tivemos que aderir a outros trabalhos, além dos que nós já tínhamos, para dar esse suporte no combate à pandemia, fazendo com que nossa carga horária aumentasse consideravelmente, com uma rotina mais cansativa, mais estressante, mais árdua, né? Muitos dos profissionais acabaram acumulando um esgotamento tanto físico como mental”
Roni Rodrigues
Fisioterapeuta Intensivista

O especialista pontua também que o processo de intubação e extubação de pacientes com Covid-19 se tornou o momento mais delicado. “Muitas pessoas estavam ficando graves demais e rápido demais, então o número grande de intubações foi um momento recorde, de fato de maior estresse, maior ansiedade, que requer destreza e agilidade da equipe”.

Além disso, a estafa relacionada ao trabalho e à pandemia afetaram a qualidade do sono da equipe da UTI, informa Rodrigues. “Nós estarmos numa carga horária mais extensa, muita das vezes tendo que dar plantão de 24 ou 36 horas, o sono ficava com tempo reduzido. Muitos profissionais ainda são mães e pais de família e acabavam tendo outros afazeres dentro de casa”.

Num momento familiar, isso fez com que a gente ficasse até um pouco mais distante, porque, por exemplo, como o meu sono estava afetado eu tirava o tempo que eu teria dedicado à minha família pra dormir, pra suprir essa necessidade desse sono acumulado ou da falta da qualidade dele e acabamos perdendo alguns momentos”
Roni Rodrigues
Fisioterapeuta Intensivista

“Foi um período também que eu tive um pouco mais de crise de ansiedade, porque muita das vezes nós vimos várias pessoas infelizmente perdendo a vida e esse anseio de querer ajudar acabava culminando um pouco nesse estado”, continua o fisioterapeuta.

Roni relata também que, em alguns casos, saía do hospital depois do horário previsto por não conseguir deixar de lado pacientes em estado grave que necessitavam de ajuda. "Nós acabávamos até saindo um pouco mais tarde para tentar salvar as vidas, chegando nas nossas residências tarde e tendo que, no outro dia, acordar bem cedo para poder estar no trabalho de novo”.

Segundo o coordenador, a elevada demanda de casos e pacientes levava os profissionais a ingerirem bebidas energéticas ou cafeinadas, a fim de se manterem alerta para os atendimentos, “o que culminava em um pouco mais de estresse para que a gente pudesse tá sempre acordado”.

Insônias

Já a rotina da pandemia para a fisioterapeuta Taynah Carvalho foi alterada drasticamente no sentido contrário. Por ser profissional autônoma, ela passou por períodos sem realizar atendimentos, “não tinha paciente no consultório, não tinha paciente domiciliar, foi assim bem difícil”.

“[A pandemia] me cansou tanto fisicamente quanto mentalmente, porque no começo eu tinha bastante medo de me contaminar e de contaminar meus pais, tive perda familiar também, então a tensão acabou mexendo comigo, com a minha cabeça”, detalha.

O momento de incertezas gerou fortes insônias na fisioterapeuta, “tinha vez que eu passava a madrugada acordada, ia conseguir dormir às 5 horas da manhã e aí já tinha que acordar, né? Então era só um cochilo, vivia cansada”.

Tem muita gente que pensa que, porque todo mundo tava em casa, foi férias, e é claro que não. Quem era autônomo teve que se virar nos trinta para poder desenrolar, suprir suas necessidades. Foi um período assim de muita pressão e tensão”
Taynah Carvalho
Fisioterapeuta

Impactos do sono

De acordo com o supervisor do programa de residência em Medicina do Sono da Universidade Federal do Ceará, o neurologista Manoel Sobreira, a piora na qualidade do sono gera diversas consequências ao organismo.

alterações de natureza cognitiva, onde os indivíduos começam a ter dificuldade de manter a atenção e a concentração, o pensamento um pouco mais lento, às vezes alterações de memória. Além disso, há fadiga; indisposição; dores no corpo; mudança no humor; eventualmente piora de sintomas depressivos e ansiosos naqueles indivíduos que têm esses sintomas”
Manoel Sobreira
Neurologista

O especialista reitera ainda que pode haver alterações hormonais provocadas por essa privação do sono, bem como o aumento de doenças cardiovasculares e doenças relacionadas ao metabolismo, como a diabetes.

A condição tende a gerar também repercussões no ambiente de trabalho, levando as pessoas a ficarem menos tolerantes e mais impacientes, mesmo na realização de tarefas consideradas simples, podendo ocasionar acidentes devido à desatenção. 

Sobrecarga de trabalho e saúde mental

Na prática clínica, Sobreira conta que observou, de modo geral, uma grande quantidade de profissionais da saúde buscando assistência especializada para o problema do sono por questões ligadas à ansiedade, ao medo e à própria sobrecarga de trabalho.

O sono é uma função biológica essencial, assim como a alimentação. Inclusive há estudos nos quais determinados animais foram submetidos à fome e outros à privação do sono, e esses últimos acabaram morrendo antes do que os que foram submetidos à fome, mostrando que o sono não é algo dispensável, muito pelo contrário, ele é fundamental no equilíbrio do organismo e, portanto, da vida”
Manoel Sobreira
Neurologista

Para finalizar, o médico informa que as pessoas que estão enfrentando dificuldades no sono devem buscar ajuda profissional especializada, além de evitar o uso indiscriminado de medicações, que podem piorar ainda mais o problema e trazer consequências com efeitos adversos.

“Aqueles indivíduos que estão dormindo um tempo que consideram inadequado ou aqueles indivíduos que não estão conseguindo dormir ou que acordam e não conseguem voltar a dormir devem procurar ajuda especializada de uma área chamada medicina do sono, nas quais uma série de profissionais estão habilitados a exercê-la”, esclarece.