'Estressante, cansativo e difícil': mães cearenses relatam efeitos do ano de pandemia à saúde mental

Home office, aulas online dos filhos e acúmulo de tarefas domésticas geram rotina de sobrecarga física e emocional a mulheres

Cuidar de si já é tarefa desafiadora em meio aos efeitos que um ano de pandemia geram na saúde mental. Quando se soma a ela o dever de cuidar do outro, da casa, do trabalho e de todo o resto, o alerta é aceso: oito a cada dez mães brasileiras tiveram sintomas de ansiedade em algum momento da crise sanitária.

A pesquisa foi feita com 7 mil mulheres, em 2020, pela empresa Catho, e reflete em números a realidade de sobrecarga física e emocional vivenciada desde março de 2020 e descrita por cearenses. Uma rotina “estressante, cansativa e difícil”, como define Raquel Silva, 41.

“Sempre fui muito caseira, nunca me senti como aquelas pessoas que precisam sair de casa. Mas agora, que me vejo presa em casa e tendo que fazer de tudo ao mesmo tempo que trabalho, sinto essa necessidade, mas nem isso pode. Então a angústia aumenta muito”, relata.

Raquel é analista de credenciamento de planos de saúde, função que exerce, agora, em home office – e que precisa conciliar sozinha com os cuidados domésticos e com a filha de 4 anos, já que o esposo trabalha fora de casa.

50%
das mulheres entrevistadas no estudo relataram sentir estresse. Cansaço mental (48%), desmotivação (44,5%), perda de sono (44,5%) e tristeza (43%) também foram citados.

“Meu chefe fala de um lado, minha filha do outro. Ela não tem muito foco na aula online, não presta atenção, e a responsabilidade é minha: ela só tem 4 anos. Pelo estresse, me pego, às vezes, chamando a atenção dela por pequenas coisas”, reconhece.

A “lista infinita” de mudanças na rotina, desde a chegada da pandemia, repercute não só na saúde mental, mas na física: a falta de estrutura para trabalhar de casa rendeu a Raquel uma hérnia de disco, exigindo inclusive tratamento médico.

“Todo mundo saía de casa às 7h e se encontrava de novo 17h30. O que eu fazia depois desse horário era deixar o trabalho pra trás, tomava um banho, fazia atividades de casa. Hoje me sinto super cansada. Ontem mesmo me deitei cedo e logo dormi”, desabafa.

A administradora Lúcia de Souza, 35, é categórica ao afirmar que “a principal mudança na rotina foi o aumento da responsabilidade”.

Com os meninos em casa, sempre tem o que fazer. Além disso, tenho que conciliar o home office com as aulas deles, dar atenção, cuidar pra não ficarem direto no celular…
Lúcia de Souza
administradora, mãe de dois filhos

Lúcia reconhece que “tá difícil pra todo mundo”, mas defende que as mães têm “um peso a mais”. “Principalmente quem é solteira, precisa cuidar da casa, do trabalho, das contas, de outras duas vidas, no meu caso, e ainda arranjar tempo pra si. É muita coisa. Só o amor mesmo pra levar pra frente”, declara.

Relação maternal minada

Não poder contar com a escola na divisão dos cuidados com crianças e adolescentes é, de fato, um agravante à condição das mães na pandemia, como avalia Ana Ignez Belém, professora de Psicologia e coordenadora do Laboratório de Estudos da Subjetividade e Saúde Mental da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

“Muitas colocavam os filhos num reforço escolar, por exemplo. Agora, precisam acompanhar horário de entrada na aula, a conexão à internet, as tarefas, tudo isso em meio ao próprio trabalho e às atividades domésticas”, cita.

Os prejuízos à saúde mental da mulher, atravessados também pela desigualdade de gênero que pesa sobre ela, podem repercutir inclusive no vínculo maternal. “E esse vínculo é essencial, um dos mais importantes na constituição de quem nós somos. O adoecimento da mãe pode gerar um distanciamento do filho”, pondera Ana Ignez.

Sobre as costas da maternidade é colocado o peso da responsabilidade dos filhos, que não é dividida igualmente com a paternidade. Mesmo essa mulher dividindo isso com outras pessoas, pesa mais sobre ela.
Ana Ignez Belém
psicóloga e professora da Uece

Em entrevista ao Diário do Nordeste sobre uma pesquisa que aborda os transtornos mentais em mães e gestantes na pandemia, a psicóloga Elisa Altafim, da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV), ressaltou os impactos desse cenário à família de uma forma global.

"Quando a mãe está com algum tipo de transtorno mental, o relacionamento dela com a criança tem alterações. Ela não consegue estar por inteiro com o filho, oferecer as necessidades básicas, atenção. Muitas vezes vai lidar com o estado de humor dela, e não com o comportamento da criança", destaca.

Mães solo, segundo pesquisa da UFC com a FMCSV, têm 37% mais probabilidade de manifestarem transtornos mentais. 

“Autocuidado precisa ser incorporado”

Ao se sentir “ansiosa e sufocada” com a rotina, Lúcia, por exemplo, revela uma estratégia para “não pirar”: “respiro, penso nas coisas boas e alivia. E rezo pra que tudo passe logo e nossa rotina possa voltar ao mínimo normal”.

Nesse contexto, o autocuidado se impõe como necessidade básica. “Ser mãe não anula o ser mulher. Em meio a isso tudo, vem o sentimento de culpa, impotência, o medo de não ser uma mãe boa o suficiente. Mas ela precisa olhar pra si, ter uma pausa, refletir sobre os papéis”, alerta a professora Ana Ignez.

Praticar atividades físicas, exercícios de respiração, interagir com amigos e pessoas que não sejam só com os filhos, assistir a um filme, ouvir música, aprender algo novo e, principalmente, recorrer à psicoterapia são estratégias fundamentais para “não estar 24h ligada às necessidades dos filhos”, segundo lista a pesquisadora.

Não é fácil, mas o autocuidado não pode ser uma palavra. Precisa ser incorporado como um voltar-se para mim. Se sou uma mãe adoecida emocionalmente, esse adoecimento vai ser extrapolado pra família também. Necessito, como humano, me cuidar pra cuidar do outro.