Além de colapsar a saúde pública, a pandemia de Covid-19 escancara uma série de desigualdades sociais históricas no Brasil. Uma delas — e que se agrava em tempos de ensino remoto — é a falha sistêmica na inclusão educacional de estudantes com deficiência.
Os prejuízos para todos da comunidade escolar durante a pandemia já são colossais. Porém, para crianças e adolescentes com necessidades mais urgentes de socialização e de rotina e que dispunham — ou deveriam, por direito — de estruturas especializadas nas escolas, como tecnologias assistivas e salas de recursos multifuncionais, as perdas são ainda maiores.
Segundo a professora Vanda Magalhães Leitão, doutora em educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), à parte as condições de vulnerabilidade socioeconômica e as dificuldades de acesso à internet, computador, celular ou tablet, que prejudicam parte significativa dos alunos, a falta de convívio e de estímulos sistêmicos provocados pela rotina escolar são os principais prejuízos do ensino remoto — o qual ela acredita ser “infrutífero”.
“Inclusão educacional implica conviver. Tanto as pessoas com deficiência quanto as que não têm condição de deficiência precisam conviver porque isso é um fator de facilitação do processo de inclusão. E elas não estão tendo oportunidade de interagir, trocar”, compreende.
Convívio
O Miguel, de cinco anos de idade, filho da professora Mônica Costa, 37, que trabalha com formação docente para a educação inclusiva na rede pública de Fortaleza, é uma das crianças que têm sido prejudicadas pela falta do convívio escolar.
Miguel tem transtorno do espectro do autismo e um nível de aprendizagem “muito bom”, segundo a mãe. Lê desde os dois anos. Portanto, no começo das aulas remotas, o desafio somente foi fazê-lo entender que o computador que ele usava para se divertir serviria, também, para estudar. “Mas logo ele entendeu. Pro meu filho foi muito fácil porque ele gosta do computador e da escola, sempre teve interesse pelas atividades escolares”, diz Mônica.
Um ano depois, porém, Miguel já está “desinteressado” pelas aulas e não está demonstrando o mesmo desempenho de antes. Além da fadiga natural do modelo de ensino, Mônica acredita que tem pesado para o filho a falta da escola. “Foi um ano de muitos ganhos em outros aspectos, mas, na interação, percebi perda significativa. Já é próprio do autismo ter essa dificuldade. Meu filho perdeu ainda mais o interesse em brincar e se aproximar de outras crianças”, compartilha a professora, consciente de que “criança aprende interagindo”.
Aprendizagem
Uma pesquisa nacional feita em julho de 2020 com professores da educação básica pela Fundação Carlos Chagas com a Universidade Federal do ABC (UFABC), a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e a Universidade de São Paulo (USP), constatou que, para 42,8% dos docentes que atuam em Atendimento Educacional Especializado (AEE), a aprendizagem dos alunos com deficiência diminuiu na pandemia.
Diferentemente do Miguel de cinco anos, o Francisco Miguel, 14, filho da Andrea Batista Irineu de Almeida, 40, tem preferido estudar em casa, assistido pela mãe, por ter dificuldade de socialização na escola. Porém, garantir a aprendizagem dele tem sido desafio constante.
“Miguel tem muita dificuldade com escrita e leitura. Se mandar ler alguma coisa, ele vai ler, mas é disperso, não vai entender muita coisa. Se passar [o conteúdo] oralmente é que ele vai entendendo”, explica Andrea. Porém, segundo ela, a escola da rede municipal na qual o filho está matriculado não se adaptou para atender às necessidades dos estudantes com deficiência. Ele, por exemplo, não recebeu material adequado às suas dificuldades de aprendizagem.
Andrea, que é atuante na escola, observa ainda que “alguns professores recebem a inclusão de braços abertos, mas, outros, só por obrigação, pra constar no currículo”. E continua: “A inclusão, na prática, é falha, principalmente agora, na pandemia, com aula remota. Se não for a gente atrás dos direitos [dos alunos], não funciona”. A crítica segue ainda para o período sem pandemia: “Não é só colocar dentro da sala de aula e tratar bem o aluno. As atividades têm que ser adaptadas. Sempre vou bater nessa tecla: inclusão na prática, não só no papel”.
Estrutura da rede de ensino municipal
Atualmente, 8.424 estudantes com deficiência estão matriculados na rede pública municipal, segundo a Secretaria da Educação (SME). E a prefeitura afirma que a demanda é crescente.
Em nota, a pasta informou que, “de acordo com o Censo Escolar 2020, Fortaleza foi a capital que mais ampliou o número de alunos com deficiência na rede municipal. Em números absolutos, tem o maior número de matrículas do Norte e Nordeste e o terceiro maior do Brasil, superada apenas por São Paulo e Rio de Janeiro”.
Porém, principalmente num contexto pandêmico, é preciso não apenas garantir a vaga em sala de aula, mas, também, dar as condições adequadas para que esses estudantes aprendam.
Para a professora Mônica Costa, uma das maiores dificuldades é não ter professores de AEE em todas as escolas. Embora seja composta por 581 unidades de ensino, a rede municipal tem somente 189 profissionais do tipo contratados. Contudo, o município argumenta que disponibiliza outros 368 profissionais para apoio escolar, distribuídos em 286 escolas, o que seria 2.353% a mais do que a quantidade existente em 2014, quando haviam 15 profissionais.
Outra questão que dificulta a inclusão diz respeito à formação dos professores, aponta Mônica. “Formação eficiente pode fazer muita diferença na prática de um professor, seja no ensino inclusivo ou na sala regular. Não vai resolver todos os problemas, mas, um professor que conhece e compreende como aquele aluno aprende, quando ele tem uma formação que possibilita mais segurança nesse processo, faz muita diferença”, afirma a educadora.
Rede estadual
Na rede pública estadual, conforme a Secretaria da Educação do Ceará (Seduc), há 7.865 alunos com deficiência matriculados em 651 das 731 unidades de ensino. Na contramão da Capital, que vive uma crescente de matrículas, em 2020, esse número era maior (7.986).
Garantindo ter uma rede bem estruturada para atender a este grupo de estudantes, a Seduc comentou, em nota, que “desde o ano passado estão sendo realizadas conferências online tanto de abrangência estadual quanto regional com a participação de profissionais envolvidos com a Educação Especial para dialogar sobre as atividades de estudos domiciliares, bem como compartilhar as experiências desenvolvidas nesse contexto de atividades remotas”.
Papel dos pais
Para Mônica Costa e Andrea Batista, como mães, manter terapias e medicações dos filhos durante o isolamento social é fundamental para garantir a aprendizagem escolar e o bem-estar deles. “Os alunos, mesmo tomando medicação, estão entrando em crise porque [devido à pandemia] os pais não estão levando pro médico, fazendo ajustes necessários na medicação. Aí não se concentram, a mãe não consegue ajudar, a professora também não”, relata Mônica.
Andrea comenta ainda que Francisco Miguel tem enfrentado muitas crises de ansiedade neste período. “E autista numa crise é uma coisa que você não queira ver”, compartilha, garantindo que o filho permanecesse indo à terapia.
Além disso, Andrea assume que o medo do retorno presencial à escola é “ter que começar do zero” no que diz respeito às adequações para atender às especificidades do filho. “Como mãe, como conheço o dia a dia dele, sei que não vai se adaptar com máscara.Vai ser difícil”, diz.
Retorno às aulas presenciais
Para a professora Vanda Magalhães Leitão, da UFC, apesar dos desafios, a volta às aulas presenciais deve ser encarada como prioridade pelos gestores públicos, principalmente no intuito de garantir os direitos dos estudantes com deficiência no acesso à educação.
“A criança de um ambiente de classe média alta tem outras condições, outros recursos. Mesmo que mãe e pai precisem trabalhar, eles têm como contratar uma pessoa [especializada para ensinar em casa]. Uma criança de nível social mais desfavorecido não tem esse recurso. E mesmo que a escola esteja oferecendo esse serviço [remoto], a criança, sozinha, não faz”.