Duas mil famílias do Ceará seguem na busca por parentes desaparecidos

Levantamento é do Anuário Brasileiro de Segurança Pública

Há 17 anos, dois sentimentos movem o cotidiano de Maria Rodrigues Santiago, conhecida como Cleide: a saudade e a dúvida. Onde e como o irmão está? “É difícil demais a vida de pessoas com gente desaparecida. É sempre uma dor, sempre uma incerteza”, diz a dona de casa de 71 anos de idade.

José Ribamar Lopes Santiago desapareceu em setembro de 2004, no mesmo mês em que ia celebrar o aniversário de 45 anos. “Amanheceu o dia e ele sumiu de casa. Morava sozinho a algumas ruas de onde moro, na Lagoa Redonda”, lembra Cleide. Segundo ela, era uma pessoa alegre e tinha muitos amigos. Além das parcerias, deixou três filhos, que, feito a tia, não cansam de procurar por ele.

“Já fizemos de tudo. Fomos na televisão, nos hospitais, fizemos Boletim de Ocorrência… Tudo. E nada do Ribamar”, lamenta a senhora. “Com a pandemia, inclusive, as coisas ficaram mais difíceis porque tivemos que ficar mais em casa, pararmos um pouco as buscas. Mas a gente continua. Até quando eu tiver vida, vou continuar procurando ele”.

A situação descrita por Cleide é a mesma de 2 mil famílias no Ceará, conforme a última atualização do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do ano passado, com dados relativos à 2017 e 2018. O levantamento traz informações sobre o número de registros de casos de desaparecimento durante um ano feitos pelas Secretarias de Segurança Pública de cada Estado.

Apesar de incluir também a estatística de pessoas localizadas no mesmo período, não há, contudo, um número acumulado de casos que continuam desaparecidos, nem mesmo a discriminação da forma como os indivíduos foram encontrados após as buscas – se vivos ou mortos.

Sempre merecedor de atenção, esse panorama ganha ainda maior destaque neste domingo (30), Dia Internacional dos Desaparecidos. A data emerge como oportunidade de realçar a importância de unir esforços para esclarecer a sorte de milhares de pessoas cujo paradeiro ainda é desconhecido por quem dividia o convívio diário.

Ações

Responsável pelo Programa de Pessoas Desaparecidas e suas Famílias, do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), Larissa Leite explica que o trabalho da entidade no que toca a essa área é feito de diversas maneiras.

“Nossa ação, no Brasil, tem sido de apoiar as autoridades que têm um papel relevante na busca por pessoas desaparecidas para que, primeiro, entendam quais são os vazios, os espaços que precisam ser preenchidos, com o intuito de fazer com que o procedimento de busca de pessoas desaparecidas seja mais eficiente”, explica.

Esses vazios mencionados por Larissa se relacionam, na maioria das vezes, a uma melhor coordenação entre instituições. “De fato, esse processo precisa ser incrementado contando com todas as informações sobre pessoas desaparecidas, canalizadas para um único sistema. A intenção é que os dados possam ser padronizados e que as autoridades possam compartilhá-los abaixo de uma coordenação, um mecanismo de busca de pessoas desaparecidas”, situa.

Neste momento de pandemia do novo coronavírus, o CICV adicionalmente passou a compartilhar recomendações com as autoridades para que evitem que este período faça aumentar o número de desaparecimentos. Isso devido à uma possível má gestão de pessoas falecidas.

“Com o maior número de falecimentos e numa situação como a da pandemia, há um risco que haja um número maior de pessoas falecendo sem identificação ou pessoas que falecem sem estarem acompanhadas de seus familiares. Se essas pessoas não são devidamente registradas, se não há uma centralização sobre esses dados, há uma grande possibilidade de que as famílias nunca venham a saber que elas faleceram, em que circunstâncias elas faleceram e onde elas estão enterradas. Desse modo, se tornariam pessoas desaparecidas”, explica.

Larissa ainda comenta que o turbulento contexto pandêmico não esmorece a vontade das famílias de continuarem buscando entes desaparecidos. Apesar das limitações de mobilidade devido ao contágio pela doença, a procura pelo reencontro sempre fala mais alto.

“O familiar de pessoa desaparecida vive com uma incerteza e como que aprisionado entre a expectativa do encontro e a angústia da ausência. E isso impulsiona essas pessoas a se manterem conectadas à busca de respostas diariamente, mesmo em situações como a que estamos vivenciando”, completa.

Continuidade

O caso vivenciado pela dona de casa Lucila Maria França da Costa, moradora do bairro Rodolfo Teófilo, na Capital, é outro que dimensiona a vontade irrestrita de rever o ente querido. Desde outubro de 2013, ela procura incansavelmente pelo irmão, Leonardo França da Costa.

À época, ele saiu de Fortaleza para acompanhar um vizinho caminhoneiro e desapareceu em Divisa Alegre, Minas Gerais. Lucila iniciou a busca no município mineiro e, desde a data, nunca mais parou. “Há dois anos, até recebemos o telefonema de uma pessoa dizendo que tinha achado ele aqui no interior do Ceará, em Itaitinga. Mas não conseguimos ir até lá pra conferir. Essa foi a única pista que tivemos”, relata.

A espera de dona Antonieta França da Costa, de 83 anos, pelo filho caçula também é grande. Ela até hoje guarda as ferramentas utilizadas por Leonardo no serviço de sapateiro, ofício que ele herdou do pai. A esperança é que os instrumentos estejam nas mãos do rebento de novo o quanto antes. Que cesse a dor da ausência.

"É tanta tristeza que, pra não ficar pensando em besteira, até aprendi a fazer tricô. Mas tem dias que são mais difíceis do que outros”.

Psicólogo responsável pelo Programa de Saúde Mental e Apoio Psicossocial do CICV, Fábio Azeredo elenca algumas recomendações para quem está nessa condição de busca por quem ainda se encontra ausente. “Primeiramente, que não se trate a incerteza como uma dificuldade de processar o luto. Não há luto sem corpo. Enquanto não há uma resposta oficial, há esperança”, salienta.

“Atividades de memória em homenagem aos que estão desaparecidos são muito valorizadas pelos familiares e podem ser feitas”, completa. Ele também explica que, salvo exceção, o CICV não presta assistência psicológica direta aos familiares. O que se realizam são encontros com essas pessoas. “Esses momentos têm um valor incrível para o sofrimento delas, sobretudo porque ali estamos facilitando que elas se deem apoio e se escutem”, destaca Fábio.

“Mas em relação ao nosso papel a médio e a longo prazo, o que o CICV faz é sensibilizar as autoridades para as necessidades dos familiares, dentre as quais entram os impactos psicológicos, psicossociais e mesmo psicossomáticos da incerteza e da saudade”, reitera.

Além disso, se oferece capacitação a profissionais de saúde mental que possam responder às necessidades desses familiares, levando em conta a especificidade do sofrimento de perda ambígua. Assim, segundo ele, dois passos são muito importantes: que as autoridades tenham entendimento em termos mais gerais do que sofrem essas famílias; e que haja uma rede de saúde mental capacitada para atendimentos psicossociais e casos que precisem de atenção individual.

Nosso papel é essencialmente apoiar as estruturas já existentes e nunca substituí-las. Assim, apoiamos, em cada localidade, a construção de uma rede de serviços capaz de responder às necessidades específicas dos familiares de pessoas desaparecidas. Eles mesmos também desenvolvem, em alguns locais, associações, que também podem realizar atividades de suporte psicossocial, às quais prestamos auxílio”, conclui.