De 'revelação de anjo' a Zé Gotinha: como foram as campanhas de vacinação no Ceará

Importância da imunização eficaz foi repassada pela população por décadas, com fortalecimento da saúde comunitária e campanhas de imunização

Fazer da chegada de uma vacina o assunto mais comentado do dia é cenário novo para os cearenses. A expectativa pela vacina contra o coronavírus é alta e a esperança de que ela ajude a mitigar os efeitos da pandemia também. No entanto, esses sentimentos por parte da população nem sempre foram a realidade do início de um processo de imunização no Ceará. 

“Em termos de expectativa por vacinas no Ceará, a gente não pode falar em nada tão grandioso como agora”, afirma o historiador Dhenis Maciel. Segundo ele, o momento se torna único devido à maior conscientização da população sobre o que é e para que serve uma vacina.

Apesar de outros imunizantes serem importantes e combaterem doenças graves, eles não eram tão debatidos pela sociedade quando foram apresentados pela primeira vez. Medo e insegurança quanto à vacinação eram expressados pela população que não entendia a necessidade de ser imunizada. 

Rodolfo Teófilo, a varíola e a "revelação de um anjo"

Em um dos mais emblemáticos casos de vacinação do Estado, o farmacêutico Rodolfo Teófilo precisou sair por conta própria por Fortaleza em um esforço de vacinar as pessoas contra a varíola, doença que matou milhares de pessoas no Ceará e foi erradicada apenas em 1971. 

Dhenis explica que Teófilo precisou inventar que recebeu a revelação de um “anjo” durante um sonho, assegurando a eficácia da vacina, para chamar atenção dos cearenses. O anjo, na realidade, era Edward Jenner, criador do imunizante contra a varíola. A apelação funcionou, e o historiador conta que “tinha fila de pessoas na porta da casa dele para serem vacinadas”.

Vacinação: projeto de Estado

O que mudou desde a época de Rodolfo Teófilo até este 2021, quando parte da população vibra pela aprovação de um imunizante e espera ansiosamente para o momento de conseguir tomar a dose contra o vírus? Para o pesquisador, desde que a vacinação se tornou um projeto de Estado, que deve ser seguido por todos os governos, independente de ideologias políticas, a postura dos cidadãos também mudou.

Desde 1970, quando o Programa Nacional de Imunização (PNI) foi criado, em pleno Regime Militar, a disseminação de informações sobre vacinas tem crescido. Antes disso, as políticas de imunização eram escassas e esporádicas, fazendo com que a cobertura vacinal do Brasil fosse desigual e o conhecimento não chegasse até o povo.

Foi por meio desse programa que o País começou a imunizar a população de forma eficaz, com base em critérios técnicos desenvolvidos por uma rede de sanitaristas e infectologistas. Em 1980, a primeira Campanha Nacional de Vacinação Contra a Poliomielite foi lançada, doença que conseguiu ser erradicada no território brasileiro apenas nove anos depois.

A Campanha de Multivacinação no Ceará

No Ceará, a primeira Campanha de Multivacinação com foco nas crianças menores de 5 anos aconteceu em 1984, como noticiou o Diário do Nordeste na época. Em meio a altas taxas de mortalidade infantil no Estado, a vacinação tinha como alvo doenças que eram responsáveis por grande parte desses óbitos, como o sarampo e a poliomielite. A importância dos imunizantes era lembrada por médicos e enfermeiros ouvidos na reportagem. 

Nesse contexto, as campanhas focavam em informar as mães sobre os benefícios da imunização para crianças. A figura do agente comunitário, que iria acompanhar mais de perto a vacinação da população de cada região, foi criada nesta época. O personagem Zé Gotinha também foi originado em 1986 para atrair a atenção de crianças para a vacina contra a pólio, que poderia ser administrada em gotas.

“Eu não sabia nem que existia essa vacina contra tantas doenças. E muito bom que agora todas as crianças vão poder tomar", disse a dona de casa Maria Regina em uma entrevista ao Diário do Nordeste em julho de 1999. A mulher, que na ocasião levava o filho de sete meses a uma consulta com pediatra em um posto de Fortaleza, foi informada no local sobre uma nova vacina contra um tipo de meningite, a HBI, que antes só era disponível em laboratórios particulares. Assim era feita a conscientização de grande parte da população em relação às vacinas.

Problemas de logística

Outro empecilho para que a vacinação chegasse a uma maior quantidade de pessoas no País era a logística. Sem fabricar os próprios imunizantes, o Brasil tinha dificuldades de alcançar grande parte da população com as vacinas. Além disso, a distribuição esbarrava em desafios, como a falta de enfermeiros treinados para vacinar e poucos locais com condições de armazenamento dos imunizantes.

Foi apenas na década de 1980, de acordo com Carlile Lavor, coordenador geral da Fiocruz Ceará, que investimentos massivos foram feitos na produção das vacinas e distribuição. Trabalhando com a saúde pública desde 1966, ele viu todas as mudanças acontecendo.

“Na década de 80, a gente conseguiu organizar essa rede de frios [para armazenamento das vacinas] e treinar as pessoas para vacinar. E na década de 90 se completou, quando as prefeituras passaram a assumir a contratação de enfermeiras e montar as unidades de saúde. Foi realmente uma coisa muito importante. E hoje o Brasil tem uma das maiores estruturas do mundo de distribuição de vacinas”. 

Se as vacinas que foram aprovadas neste domingo (17) já puderam ser aplicadas em diversas cidades do Brasil até esta terça-feira (19), incluindo pelo menos nove municípios cearenses, é porque essa rede de atendimento funciona de forma eficiente. “Tendo a vacina, a gente consegue vacinar”, diz o médico sanitarista.