Passados 10 meses desde o início da pandemia no Ceará, tornou-se corriqueiro associar morte e Covid-19. A doença eleva o número de óbitos não somente entre os infectados, mas pelos efeitos que provoca no sistema de saúde. A mortalidade materna, nesse contexto, é um exemplo. De 2018 para 2019, o índice havia reduzido em aproximadamente 10,4% no Estado. No período seguinte, entre 2019 e 2020, porém, foi registrado um aumento de cerca de 62,9%.
Os dados são do IntegraSUS, plataforma da Secretaria da Saúde do Estado (Sesa). O índice em questão trata-se da razão de mortalidade materna (RMM), que representa o número de óbitos maternos a cada 100 mil nascidos vivos. Na definição do Ministério da Saúde, essa taxa estima a frequência de óbitos femininos ocorridos até 42 dias após o término da gravidez, atribuídos a causas ligadas à gestação, ao parto e ao puerpério, em relação ao total de nascidos vivos.
Em 2018, a RMM no Estado era de 64,88, e diminuiu para 58,11 no ano seguinte. A tendência positiva foi interrompida em 2020, quando o índice chegou a 94,68.
De acordo com a obstetra Liduína Rocha, presidente do Comitê de Prevenção à Mortalidade Materna, Infantil e Perinatal no Ceará, um pacto estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) estipula que a razão de mortalidade materna deve ser menor que 35 mortes maternas por 100 mil nascimentos.
A médica indica que é evidente a relação entre mortalidade materna e a desigualdade social.
"As mortes maternas, na maioria absoluta dos casos, são mortes que a ciência já descobriu caminhos para evitar. São evitáveis. E se a gente não evita, é porque a gente falhou, ou no acesso ao sistema de saúde ou na assistência desse sistema", afirm Liduína Rocha.
A morte obstétrica, segundo Rocha, abrange um período temporal, que vai do momento entre a gravidez, o parto e até 42 dias de puerpério. Caso se estenda até um ano depois, passa a ser considerada uma "morte materna tardia".
Para o cálculo da RMM, são consideradas duas variantes desse tipo de óbito. A primeira é a morte obstétrica direta, que ocorre quando o fato de estar grávida implica diretamente na causa do óbito - como hipertensão induzida pela gravidez, hemorragia e infecção, por exemplo; já na indireta, há influência de fatores que já existiam antes da gestação, como doenças crônicas. Nesse caso, a gravidez acaba sendo um agravante para a morte.
Há uma exceção, porém, nos óbitos por feminicídio, que não se classificam como causa direta ou indireta, mas também entram no cálculo da razão de mortalidade.
Risco para a mulher
"Como política pública, houve e há um esforço enorme de construção do programa Nascer no Ceará, que é para a redução da mortalidade e da morbidade materna e perinatal, no sentido de diminuir causas diretas e indiretas. Só que a gente viveu e vive esse tempo da pandemia e, se observarmos essa razão de mortalidade materna, a gente teve um incremento imenso por uma causa direta, que é exatamente a infecção pela Covid", pondera a obstetra.
Ela reforça que gestantes, parturientes e puérperas são grupos de risco para morbidade e mortalidade pela Covid-19. Na explicação do ginecologista da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac), Marcelo Gondim, uma paciente jovem poderia tratar em casa um quadro de pneumonia, por exemplo. Mas se ela estiver grávida, pode evoluir muito rapidamente para um estado mais grave.
"As maiores complicações da Covid-19 são justamente o acometimento pulmonar e fenômenos tromboembólicos, ou seja, a geração de trombos. E na gravidez, principalmente no final dela, tem um aumento fisiológico dos fatores de coagulação, ou seja, no fim da gravidez e no pós-parto, a gestante tem um risco muito aumentado de ter uma trombose", diz Marcelo Gondim, professor do curso de Medicina na Universidade de Fortaleza.
O pico da RMM se deu no pico da pandemia de Covid-19
Os dados do IntegraSUS também evidenciam a possível relação entre a pandemia e o aumento da mortalidade materna. Em 2020, o pico de RMM no Ceará foi registrado em maio, chegando à taxa de 213,7 - no mesmo mês em que se constatou o pico de casos e óbitos pela Covid-19.
Para Liduína Rocha, não há dúvidas de que a pandemia contribui para esse cenário. Ela enfatiza que o índice vinha diminuindo por intervenções históricas, mas, agora, o Estado se encontra diante de um quadro agudo que estabelece uma condição de tensionamento de todo o sistema de saúde. "Se você pautar causas por outras condições, outras patologias, vamos ver uma coincidência nesses gráficos (de pico). Porque maio foi um momento de sobrecarga da rede de saúde, quando houve dificuldade de acesso ao sistema", pondera.
A obstetra acredita que, para tentar reverter esse quadro, será preciso criar um fluxo de atendimento para mulheres grávidas e puérperas, a fim de evitar maior exposição aos riscos da doença.
"Agora nas políticas públicas, precisamos dar respostas concretas. Estamos refletindo se precisamos redesenhar a rede no sentido de uma inteligência maior, em que a gente possa ter maternidades específicas para receber gestantes, parturientes e puérperas com Covid, e outras que não. Esse é o momento histórico, essa é a discussão agora", afirma.
Na visão de Marcelo Gondim, deve-se atentar à qualidade dos exames de pré-natal, que são decisivos para a saúde da gestante. "É a paciente conseguir chegar nessa consulta e ter o remédio que foi prescrito. Facilitar o acesso, ter vaga, retornos mensais no começo e ter acesso aos exames complementares. Assim, a gente consegue identificar precocemente doenças que podem impactar no final", declara.