A primeira dor de cabeça veio aos 11 anos, tão forte que causou um derrame e danificou os nervos ópticos - irreversivelmente. O colorido da adolescência, então, foi transferido para os outros sentidos: audição, tato, olfato e paladar encarregados de traduzir o mundo privado aos olhos. Mais de duas décadas depois, Maria de Fátima Félix, de 36 anos, conta com apenas 4% da visão. Número que deve chegar a zero, já que a cegueira é progressiva - o oposto do acesso a espaços e recursos adaptados a ela, que parecem não sair do lugar.
As barreiras a transpor no cotidiano sempre foram muitas, acentuadas pelas falhas na garantia de acessibilidade, que contribuíram para que Fátima ficasse dos 13 aos 20 anos de idade sem estudar. "Hoje, graças a Deus, concluí meu Ensino Médio através do braille, e pretendo ir mais longe. Quero fazer um cursinho pré-vestibular pra fazer o Enem e cursar uma faculdade de serviço social", projeta a estudante de uma das turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Associação de Cegos do Estado do Ceará (Acec).
O domínio da escrita e da leitura em braille - cujo Dia Mundial é celebrado hoje - veio em três meses, no período em que estudou no Instituto dos Cegos, em Fortaleza. Segundo Fátima, porém, aprender o sistema é só um passo no longo caminho de acesso a direitos. "São poucos os locais que têm (materiais adaptados), e se têm é tudo apagado. Viajei pela primeira vez de avião e a moça perguntou se eu queria informativo em braille. Estava todo em inglês e totalmente apagado, parece que tinham tirado do fundo do baú. Minha irmã teve que ler pra mim", exemplifica a estudante.
Necessidades
No último dia 26, foi sancionada a Lei nº 16.712, que estabelece um prazo de até 120 dias para que bares, restaurantes e hotéis do Estado ofereçam cardápios, menus, informativos e tabelas de preços escritos no sistema braille, com o intuito de atender adequadamente às pessoas com deficiência visual. Contudo, para o professor de Atendimento Educacional Especializado (AEE) da Acec, João Bosco de Farias, 34 anos, a lei é um "avanço enorme", mas as políticas públicas precisam considerar as especificidades. "Imprimi cardápio em braille, solucionei todos os problemas. Será? E as pessoas com deficiência visual total que não sabem ler braille? E as que têm baixa visão e só leem letras ampliadas? E as que não sabem nenhum dos dois? Temos que pensar em tudo o que existe disponível para tornar as coisas acessíveis. É preciso conhecer melhor as realidades e entender que existem outros tipos de leitura", salienta Bosco, cego desde a adolescência devido ao desenvolvimento de um glaucoma congênito.
Atualmente, o Ceará possui cinco gráficas públicas de impressão em braille: no Centro de Profissionalização Inclusiva para Pessoas com Deficiência (Cepid), na Biblioteca Pública, no Instituto Federal do Ceará (IFCE), na Assembleia Legislativa e em um dos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). Dentre os materiais impressos, como lista a coordenadora do Cepid, Regina Tahim, estão "textos, programação de eventos e de cinemas, bem como folders diversos e cardápios de alguns restaurantes". Qualquer pessoa pode solicitar impressão gratuita, doando apenas o papel A4 de gramatura 40kg.
Esperança
A Acec também dispõe de uma impressora braille e de funcionários que realizam a adaptação dos materiais a partir de arquivos digitais. O custo, explica a coordenadora Elinalva Alves, depende do número de folhas do documento, e é completamente repassado às atividades da associação. O serviço é ofertado há quase duas décadas, para atender tanto alunos da rede pública quanto - e principalmente - da própria Instituição, já que, segundo a gestora, "o Estado não atende estudantes que não sejam de escola pública".
A procura de empresários pelo serviço de impressão de informativos em braille, lamenta a coordenadora, é pouca. "Desde quando a lei foi falada, se tivermos feito três cardápios para Fortaleza foi muito, simplesmente porque as pessoas não se preocupam em adaptar esses materiais". A esperança é de que a lei, "que sempre foi um anseio dos meninos", contribua para mudar o cenário. "É um absurdo que eles cheguem num restaurante e dependam de alguém para dizer o que tem disponível. Ainda se luta diariamente com essa exclusão velada em vários espaços".
As escolas regulares, menciona Elinalva, são alguns deles. Hoje, cerca de 80 estudantes estão matriculados nas turmas de EJA da Acec, "já que estavam fora da escola por falta de apoio". "É importante para que eles tenham um recomeço na escola, um acompanhamento para que possam concorrer com as demais pessoas para o mercado de trabalho. Porque se as portas já são fechadas, com a falta de escolaridade, fecham mais ainda".