Há dois anos, vivendo com somente 30% da visão do olho direito por causa de uma doença rara chamada “ceratocone”, Bento Ribeiro, 51, teve suas córneas trocadas pelas de um jovem desconhecido que havia falecido cerca de uma semana antes. O transplante deu, literalmente, ao economista, uma nova forma de enxergar a vida.
“Antes de receber as córneas, eu não pensava, não é que eu não quisesse ser doador, mas eu não pensava no assunto. Passava despercebido. Mas, depois que fui beneficiado, percebi a importância da doação, que pode salvar ou melhorar as vidas das pessoas”, conta Bento, que, hoje, é declaradamente doador de órgãos.
Ver que Bento conseguiu se recuperar bem do transplante e que, atualmente, diz que consegue enxergar melhor do que na infância, antes mesmo de começar a usar óculos, fez com que a família dele também compreendesse a doação como um gesto de solidariedade.
“Acho muita insensibilidade do ser humano ter visto isso na própria família e continuar sendo contra. [...] Minha família é toda doadora. Tomara que demore bastante, mas todos estão cientes de que o que puder vai ser doado. Independentemente de quem for, da idade, o que der pra aproveitar, vai ser”, assegura o economista.
Recentemente, há um mês, Bento perdeu sua irmã, Adélia. Impactado pela morte, ele nem lembrava que ela mesma, em vida, acompanhando seu caso, havia se declarado doadora. Foi o sobrinho dele, Thiago, filho de Adélia, quem lembrou e fez valer o desejo da mãe. “Ele [Thiago] lembrou da vontade dela e também de mim, por eu estar bem melhor hoje”, disse.
As córneas de Adélia foram doadas para a fila de transplantes do Ceará. Para a família, o ato foi uma forma de manter viva sua memória. Isso porque a doação, acredita Bento, “ameniza o sofrimento da perda porque sei que tem uma parte dela em alguém”.
Vontade expressa em tatuagem
A enfermeira Lisiane Alencar, 55, do Instituto Doutor José Frota (IJF), há mais de 20 anos se declara doadora de órgãos. Mas, para evitar qualquer dúvida, ela tem a decisão tatuada no corpo.
“Tenho uma tatuagem no braço esquerdo. Tenho um grande amor à causa, já não cabia mais no coração. Transbordou e virou a tatuagem”, conta a profissional da saúde.
Segundo Lisiane, a decisão partiu da vivência hospitalar. “Sempre trabalhei em UTI [Unidade de Terapia Intensiva] com pacientes graves e, vendo o processo de doação acontecer, me apaixonei [pela proposta]. [...] Acredito no poder transformador do bem. A solidariedade do nosso povo é contagiante”, afirma.
Como a decisão final cabe à família, a quem também quer ser doador, a enfermeira lembra que é necessário afirmar e reafirmar durante a vida o desejo para facilitar a tomada de decisão dos parentes após sua morte. Além disso, ela estimula que as pessoas se informem sobre doação.
Para se declarar doador você precisa ter conhecimento de como acontece o processo. Não tome decisões com dúvidas e medos. Decida pela vida"
Metade dos potenciais doadores não informa à família
Segundo a pesquisa Doação de Órgãos do Instituto Datafolha, feita entre os dias 2 e 7 do último mês de agosto, 7 em cada 10 brasileiros querem ser doadores de órgãos pós-falecimento. No entanto, quase a metade (46%) nunca informou à família o desejo.
A pesquisa também dá conta de que a intenção de doação de órgãos diminui com a idade. Dentre os entrevistados de 18 a 24 anos, 79% se mostraram interessados, frente a 55% do grupo com mais de 60 anos.
Desinformação
Márcia Vitorino, coordenadora da Comissão Intra-hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT) do Hospital Geral de Fortaleza, conta que o diálogo com as famílias dos pacientes sobre doação de órgãos só começa após encerrado o protocolo de morte encefálica.
“Quando fecha, o [setor de] Serviço Social pede à família pra comparecer ao hospital. Aí quando o médico termina de comunicar o óbito é que a gente vai fazer a entrevista. Às vezes, a família não entende bem”, relata a gestora.
Segundo ela, tanto há muita desinformação sobre o processo de doação de órgãos como as famílias costumam dizer que os entes nunca tinham declarado que queriam ser doadores.
“Muita gente às vezes nega porque diz que a pessoa não disse que queria doar. Acontece muito, principalmente com paciente vindo do Interior. Não se fala em doação, em morte, isso é natural do ser humano. A gente sabe a opinião deles, mas a gente tenta argumentar”.
Geralmente, compartilha Márcia, os profissionais do Serviço Social recorrem aos familiares mais propensos à doação, que têm um pouco mais de conhecimento sobre, e também explicam o procedimento aos que não sabem como funciona.
Acho que falta muito esclarecimento à população. Tem gente que diz: ‘mas [o órgão] vai pra fila, não vai pra uma pessoa rica não, né?’. Tem muito tabu. Mas também tem família que chega e já entende”
O próprio Bento Ribeiro, citado no início desta matéria, que recebeu córneas, hoje, sabe: “Quando é retirado um órgão, o corpo vai pro velório de forma digna, como se não tivesse sido nada mexido. Deixam de um jeito que não se sabe que foi doado algum órgão. Por fora, não vai deformar a pessoa, deixar uma última imagem triste”, garante o economista.
Mais de 900 transplantes
No Ceará, de acordo com a Secretaria da Saúde do Estado (Sesa), com dados do IntegraSUS, de janeiro a agosto deste ano, foram feitos 904 transplantes de órgãos e tecidos. A maior parte de córnea (587), de fígado (109) e de rim de doador falecido (107).
O número já é 80,5% do total de transplantes feitos em todo o ano passado (1.122).