“Acho que os alunos da minha sala pensam todo dia em desistir do Enem porque imaginam que não vão conseguir. Mas a escola dá apoio pra gente não desistir e pelo menos tentar. Não custa nada”.
O desabafo é da estudante da rede pública estadual Gabriela Matos, de 17 anos. Ela está entre os 5.783.357 candidatos - sendo 325.706 do Ceará - inscritos para fazer o próximo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), principal porta de acesso ao ensino superior público no Brasil.
Assim como os colegas de sala, ela também pensou em desistir. "Por enquanto, eu vou tentar. Mas não sei se, daqui pra lá, vai mudar alguma coisa. Tudo está acontecendo do dia pra noite”, diz, referindo-se às mudanças repentinas que a pandemia do novo coronavírus vem impondo à rotina escolar.
Gabriela e os colegas não são um caso isolado. Conforme uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional da Juventude (Conjuve) com 33.688 participantes, intitulada “Juventudes e a Pandemia do Coronavírus”, 49% dos jovens que planejam fazer o Enem já pensaram em desistir. Quase 30% dos entrevistados também pensaram em deixar a escola.
Ainda que não existam dados que evidenciem como está atualmente a evasão escolar como um todo no Ceará, instituições que atuam, há anos, no combate a este problema crônico ponderam que são altos os riscos de acentuação do abandono em 2020. Entidades como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) têm alertado sobre o assunto.
Um dos problemas indicados pelos entrevistados é a dificuldade de acesso às ferramentas tecnológicas para acompanhar as aulas online. "Muitos estudantes da rede pública não têm condições de comprar equipamentos, de ter um celular de qualidade ou internet. Isso é um ponto nevrálgico nessa perspectiva de educação e, sobretudo, nessa preparação do Enem", sentencia o professor de Português da rede pública estadual, Maurício Manoel Santos.
Obstáculos impostos pela distância
De acordo com a pesquisa, entretanto, os principais desafios dos jovens não são propriamente o aparato tecnológico disponível ou falta de tempo, mas sim a ausência do equilíbrio emocional, de um ambiente tranquilo em casa e a dificuldade de organização para o estudo à distância.
“Eu não estou conseguindo manter uma disciplina. Antes, a gente acordava, ia pra escola e lá tinha toda uma rotina de estudos a ser seguida. A gente se organizava. Agora, é totalmente diferente. Cada aluno tem a sua rotina, de acordo com a sua casa”, corrobora Gabriela.
Para ser disciplinado e organizado nos estudos sem a presença do professor, o aluno tem que exercer a autonomia e “buscar uma maturidade”. E para que isso aconteça é preciso reconhecer como fundamental a presença das pessoas e as relações de afeto, indica a professora de Língua Portuguesa e idealizadora do Curso Escreva, Elaine Antunes.
“Muitos sinalizam a falta que sentem do professor, do ambiente escolar, dos amigos e falam que valorizam isso mais que antes da pandemia. Parece que precisaram estar limitados para que pudessem entender que, sozinhos, tudo fica mais difícil de se conseguir”, afirma, apontando a maturidade como o maior ganho dos alunos no pós-pandemia.
Enem e as controvérsias do adiamento
Devido à pandemia da Covid-19, a aplicação da primeira prova impressa do Enem 2020 foi adiada em 77 dias, passando de 1º de novembro deste ano para 17 de janeiro de 2021 (Veja calendário completo abaixo).
O adiamento, porém, gerou descontentamentos. A opinião dos alunos, alega Gabriela, não foi levada em conta na enquete voluntária realizada pelo Ministério da Educação (MEC) e pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Dos 1.113.350 alunos que responderam à pesquisa, número correspondente a cerca de 20% do total de inscritos no Enem, quase metade (49,7%) optou pela realização do exame em maio de 2021. E não em janeiro, tal como fora definido. Esta opção foi preferência de 35,3% dos estudantes.
“Janeiro é muito perto em consideração a tudo o que a gente está passando, como a pressão psicológica e tudo mais. Eles podiam ter adiado para março ou abril”, sugere a adolescente, que deseja garantir uma vaga no curso de Medicina Veterinária.
Opções intermediárias
Com os mesmos 17 anos e também aluna da rede pública estadual, Aisha Paz avalia o adiamento do Enem como uma “questão complicada” pois, quanto mais prolongado for, menor será o auxílio dado pela escola aos estudantes. Isso porque está mantida a previsão de encerramento do ano letivo para dezembro.
"Estudar sem o auxílio da escola vai ser muito difícil, principalmente se não existir nenhum projeto de incentivo público para ajudar quem não vai mais estar na escola”.
Para ela, que está em dúvida entre os cursos de Enfermagem e Design de Produtos, a enquete deveria ter incluído períodos intermediários nas opções.
“Março seria um mês muito bom, mas as datas colocadas na pesquisa estavam muito mal divididas. E [a opinião da maioria] deveria ter sido respeitada porque o ensino ficou mais defasado em todos esses meses de quarentena”.
Representantes do MEC, por sua vez, justificaram que a decisão levou em conta não somente os resultados da enquete, como também a opinião de secretários estaduais e dirigentes de instituições de ensino superior públicas e privadas do País.
Desequilíbrio emocional
A alteração repentina da rotina escolar deixou a estudante Aisha “completamente desestabilizada”, tão logo cedo percebeu que o período de quarentena não seria curto.
“Eu tive uma crise muito grande de ansiedade. Nos dois primeiros meses [de isolamento social], eu passava o dia inteiro deitada na cama sem saber o que fazer. Toda a minha rotina e todos os meus planos foram desfeitos. Isso foi extremamente assustador”.
Foi somente após se engajar em um projeto social que a jovem recobrou a motivação e redefiniu a rotina, agora cheia de atividades. Além de estudar e ajudar nos afazeres de casa, Aisha voltou a desenhar e começou a trabalhar como ilustradora para complementar a renda da família durante a pandemia.
“A gente vem de uma cultura forte, vista por você mesmo e sua família, de que [o dia] não deve ter espaço só pra estudar. Tem que ajudar, limpar a casa, trabalhar”.
Mesmo sendo aluna de uma escola particular de Fortaleza, Melissa da Costa Vieira, de 16 anos, também enfrenta problemas na preparação para o Enem.
Não saber quando o exame seria realizado, por exemplo, adicionou um “nervosismo extra” ao seu dia a dia. “O aluno do terceiro ano já tem ansiedade em condições normais por conta de tanta matéria para estudar, pela pressão. E não saber nem quando seria o dia da prova foi bem complicado pra mim e pros meus amigos”.
Somado à exaustão, o pensamento sobre o futuro da vida em sociedade durante e no pós-pandemia "dá medo e assusta", diz a jovem.
Incertezas e desigualdades expostas
Além de comprometer a saúde de milhões de pessoas por todo o mundo, a propagação da Covid-19 também acrescentou mais incertezas à vida dos estudantes pré-universitários, elevando a pressão e a insegurança.
“Nesse período da adolescência, os alunos já são repletos de dúvidas e também de expectativas em relação ao Enem. Com esse aumento de pressão, parece que eles estão menos confiantes com as aulas remotas, têm dúvidas se estão aprendendo de forma adequada”, confirma o professor de História da rede pública estadual, Paulo Giovanni.
Segundo ele, a pandemia ainda revelou mais claramente outra questão “extremamente complexa”, que é a desigualdade social. Se antes o aluno encontrava na escola um ambiente comum de estudo, à distância a situação se modifica de casa para casa.
"Esse sistema remoto ampliou muito a desigualdade social. E isso acaba se refletindo no aprendizado deles", associa o professor, revelando que alguns de seus alunos já manifestaram a vontade de desistir do Enem frente às diversas dificuldades.
Assim como ele, Aisha Paz afirma conhecer alunos que não vão mais fazer as provas do Enem 2020. São pelo menos cinco jovens. “É seu último ano na escola. Ou você vai estudar numa faculdade ou trabalhar. Você tem que correr de uma forma desesperada para o seu futuro”.
Mesmo acreditando que o seu rendimento escolar foi prejudicado, a adolescente garante não pensar em desistir, pois foi justamente através do estudo que alguns de seus familiares conseguiram acessar melhores condições de vida. E são eles a sua principal fonte de motivação e apoio.
"Mesmo com essa base familiar tão estruturada, eu pensei em três mil opções fora o ensino superior porque eu achei que não era uma coisa que cabia mais à minha realidade. Imagina quem não tem isso. Não teria coragem de não fazer [o Enem] pela minha família”.
Calendário do Enem
17 de janeiro de 2021
Aplicação do Enem impresso (1º dia)
24 de janeiro de 2021
Aplicação do Enem impresso (2º dia)
31 de janeiro de 2021
Aplicação do Enem Digital (1º dia)
7 de fevereiro de 2021
Aplicação do Enem Digital (2º dia)
24 de fevereiro de 2021
Aplicação do Enem PPL/Reaplicação (1º dia)
25 de fevereiro de 2021
Aplicação do Enem PPL/Reaplicação (2º dia)