Atravessando estradas de areia e percorrendo longos quilômetros de solidão, médicos cearenses, que integram o programa de Pós-graduação da Escola de Governo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Brasília, adentram o interior do Ceará a fim de garantir o acesso à saúde para pessoas mais vulneráveis.
Chegando em locais onde o acesso à internet e ao serviço público de saúde ainda é muito árduo, atendem quase 2,4 mil famílias em cerca de 15 municípios cearenses, detalha mestranda em Políticas Públicas de Saúde na Fiocruz Brasília, Ana Paula Dias de Sá.
Ao todo, o projeto com foco em assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), também concentra 45 Agentes Populares de Saúde do Campo (APSC-CE) em formação. Dentre alguns municípios contemplados estão Amontada, Canindé, Crateús, Santa Quitéria e Miraíma.
A iniciativa, em funcionamento desde 2020, realiza parceria com a Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares (RNMMP). Em suas ações, ficam responsáveis não só por atender pessoas com difícil acesso à saúde, como por formar agentes populares capazes de atuar na região.
Na pandemia, ter pessoas falando sobre conscientização e informando os cuidados necessários é de suma importância para a saúde da nossa comunidade.
Moradora do Assentamento Vida Nova, localizado a 15 km de Canindé a técnica e também Agente Popular de Saúde do Campo de 35 anos, percebe essa formação sobre o cenário da Covid-19 como essencial para suprimir uma carência em sua comunidade.
Vivendo em uma região mais afastada, o projeto consegue preencher as brechas deixadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Antes disso, era ela quem atuava nos períodos de espera pelas visitas mensais de enfermeiras no assentamento.
Impactos no interior
Já a aposentada Dona Raimunda Souza dos Santos, 61 anos, fala do projeto com uma voz marcada de gratidão. Acompanhando as ações realizadas pelo projeto desde o começo da pandemia, vê a presença dos médicos como essencial para a sua comunidade do Assentamento Vida Nova.
A gente precisa de pessoas que acompanhem a comunidade, porque tem muita gente, muitos idosos, e o acompanhamento que a gente tem mesmo é dos agentes populares.
Durante os primeiros meses após a chegada da Covid-19 no Ceará, Dona Raimunda acompanhou palestras informativas sobre os modos de prevenção ao vírus, tirou dúvidas e seguiu as recomendações dos médicos do projeto.
“Fomos muito bem atendidos, nunca deixaram a comunidade desassistida. Se não fosse por eles, acho que muita gente teria morrido com essa doença”, relata.
Formação de agentes populares
Conforme Ana Paula Dias, que também faz parte da RNMMP, a Formação em Agentes Populares de Saúde foi inspirada em um movimento já existente em Recife. Em âmbito estadual, os integrantes do projeto optaram por realizar um processo formativo como parte da pesquisa-ação do mestrado.
Em muitos desses lugares, a ação do poder público não foi visível, muitas equipes de saúde ao priorizar o atendimento a Covid, diminuíram a ida aos territórios mais afastados, onde às vezes, a única fonte de informação e orientação ocorre por meio desses agentes.
A formação teórica ocorre de modo remoto a cada 15 dias, contando posteriormente com uma atuação prática de cada Agente em seus respectivos territórios.
Também realizam a ação de dar suporte às famílias por meio de iniciativas de prevenção, como distribuição de máscaras, álcool e até orientação sobre os cuidados sanitários.
Autonomia das comunidades
Durante o trabalho, os médicos mestrandos tiveram orientação pedagógica para pensar a melhor maneira de realizar as atividades juntamente com as famílias dos assentamentos.
O coordenador do Programa de Pós-graduação da Escola de Governo Fiocruz, André Fenner, explica que a pesquisa teórica esteve presente antes da entrada nos territórios.
Toda a parte teórica sobre a vigilância popular em saúde, sobre a questão da pedagogia freiriana, da pedagogia da autonomia e da alternância. Por exemplo, passamos um período fazendo formação e outro aplicando no território.
A variação entre momentos de aula e de prática na comunidade buscam não só intervir pontualmente no local, mas formar os agentes de saúde para que possam ter uma autonomia de atuação em suas comunidades.
Aplicativo em parceria com a comunidade
O profissional da saúde integrante da RNMMP, Fernando Paixão, também faz parte do programa de mestrado da Fiocruz. Responsável por acompanhar a região dos municípios de Itatira e Canindé, desde 2020 tem construído um aplicativo de saúde capaz de criar um banco de dados.
A ferramenta busca auxiliar o trabalho dos agentes, uma vez que ao coletar informações, será possível monitorar o quadro de saúde dos moradores, compreender suas condições socioeconômicas e potencialmente pensar em políticas públicas.
Esse aplicativo busca dar autonomia e imersão da comunidade nessa vigilância popular de saúde. A ferramenta auxiliar na coleta de dados e a partir disso, vamos saber a condição de saúde das pessoas e as maiores necessidades.
Atualmente, o aplicativo passa pelo processo de teste no Assentamento Vida Nova, conhecido como Comunidade Transval. Assim, juntamente com a atuação dos Agentes Populares de Saúde do Campo do Ceará, poderão reduzir as dificuldades de acesso à serviços básicos de saúde.
Vendo a saúde como um âmbito muito maior do que apenas a ausência de doença, vê também que aborda a capacidade de ter acesso à alimentação de qualidade, à moradia, saneamento básico e transporte.
“A saúde se constrói junto com a comunidade, que busca identificar seus problemas e potencialidades A partir da organização poder cobrar do poder público suas necessidades e demandas”, conclui.