‘Projeto Elas:’ por que depressão e ansiedade afetam mais mulheres que homens?

Os problemas de saúde mental afetam homens e mulheres de maneiras diferentes. A depressão assim como o Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) são registrados mais em mulheres que em homens, revela a Ciência em diferentes pesquisas. Essas são questões multifatoriais, mas aspectos hormonais e pressões sociais, que recaem mais sobre elas, ajudam a explicar essa maior prevalência no público feminino.

O Diário do Nordeste inicia hoje a quarta edição do especial jornalístico "Nenhuma a Menos", uma série de 10 reportagens — que integra o "Projeto Elas" —, para discutir atitudes, costumes, tradições, aspectos biológicos e comportamentos que impactam na saúde mental de meninas e mulheres, visando debater formas de buscar seu bem-estar, entendendo que essa é uma demanda coletiva, de toda a sociedade, e que atravessa questões que vão além de doenças, pois ultrapassam temas como saúde e envolvem educação, cultura, política e economia.

Em casos mais extremos, as pessoas diagnosticadas com problemas de saúde mental precisam de internação hospitalar. Entre janeiro e agosto de 2024, ocorreram mais de 171,5 mil internações em todo o Brasil devido a transtornos mentais e comportamentais, de acordo com dados do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), do Ministério da Saúde.

Quando se observa a causa específica, é possível perceber que, quando se trata dos transtornos de humor — como depressão, com ou sem ansiedade associada —, a maior parte das pessoas internadas são justamente as mulheres: 65% do total, conforme os dados do SIH/SUS, levantados pela reportagem do Diário do Nordeste.   

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relatório Esgotadas, de 2023, da organização não-governamental Think Olga também mostra essa diferença. Enquanto a maioria dos transtornos causados por uso de álcool e outras drogas está concentrada entre homens, sete em cada dez casos de depressão ou ansiedade ocorrem em mulheres, segundo o documento. Além disso, em uma pesquisa com 1.078 mulheres feita pela ONG, cerca de uma em cada três entrevistadas (35%) afirmou já ter sido diagnosticada com ansiedade, e uma em cada seis  (17%), com depressão.

Se alterações hormonais as deixam mais suscetíveis a desenvolverem esses transtornos mentais ao longo do ciclo reprodutivo, as cobranças sociais para a mulher trabalhar fora e cuidar da casa, da família e de si geram sobrecarga. Além disso, a ruminação — o pensar em excesso — é mais comum nelas. “Acaba sendo mais difícil se desligar, se desconectar dos problemas, daí [vem] mais ansiedade e, por sua vez, mais depressão. E as coisas vão se retroalimentando”, explica o psiquiatra Igor Emanuel, diretor da I Psi Clinic.

A psicóloga obstétrica/perinatal e da parentalidade Milena Bomfim acrescenta que a mulher também tem mais facilidade de ter estresse pós-traumático e transtornos relacionados à alimentação. “Também sabemos que as mulheres estão mais vulneráveis a alguns tipos de violência, como abusos sexuais, e que, na parte profissional, ainda há uma diferença na valorização. Tudo isso é plano de fundo para ter uma maior prevalência de alterações emocionais da mulher”, afirma.

Algumas mudanças comportamentais podem dar pistas de que algo não está bem. Se a mulher já não tem prazer em realizar atividades que antes gostava de fazer ou mostra uma perda de energia, sem conseguir seguir a rotina, deve-se ficar atento. Alguns outros sinais citados por Bomfim são:

  • Ela está frequentemente irritada, mas antes não era assim;
  • O humor muda constantemente;
  • Ela passa a se isolar, não quer mais sair e interagir;
  • Passou a apresentar alterações no sono;
  • Tem choro frequente, e antes não tinha essa característica.

A psicóloga Nara Barreto também cita o impacto dos ciclos da vida reprodutiva da mulher na saúde mental, mas acrescenta que eles são agravados por questões sociais e cultural no qual ela está imersa. É o caso da maternidade compulsória, de um suposto instinto materno e da ideia de perda de valor sexual após a menopausa.

“[Essas fases] poderiam ser iniciadas e fechadas com muito mais naturalidade do que de fato são, por conta dessas questões culturais, essas exigências, essas normas e esses introjetos culturais, que são verdadeiros algozes para o nosso processo de desenvolvimento”, afirma.

Quem também segue por esse caminho é a enfermeira Eliany Nazaré Oliveira, professora do curso de Enfermagem da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) com pós-doutorado na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. “Em todas as pesquisas relacionadas ao início, à aquisição de problemas mentais, as mulheres se destacam na depressão e na ansiedade.  E aí sempre precisamos fazer a interface com a cultura em que essas mulheres vivem”, defende.

“ENTRE O CERTO E O ERRADO EXISTEM MUITAS COISAS”

Bastava pensar em alguma meta que precisava atingir no trabalho que a psicóloga e facilitadora de biodança em formação Claudia Araújo, 31, sentia o coração acelerar. Ela também costumava sonhar com situações de trabalho, tinha muitos pensamentos ao mesmo tempo, sentia dificuldade para focar em uma atividade e tinha frio na barriga. “Tudo isso me trazia algumas notícias de que alguma coisa poderia não estar tão certa”, relata.

Os sinais de ansiedade estavam presentes, por exemplo, antes de reuniões importantes, em que era a única mulher, estava em um cargo de liderança e precisava defender alguma ideia ou uma mudança de estratégia. “Isso era muito cansativo, porque eu tinha que pensar em muitos argumentos, em muitas linhas de raciocínio. Não era só uma preparação para uma reunião, mas pensar em mil coisas que podiam dar errado”, lembra.

Formada inicialmente em Administração, Claudia resolveu mudar de rumo e cursar Psicologia. Ela diz que prefere pensar em saúde mental apenas como saúde, “justamente por sair de uma dicotomia de mente e corpo”. E não foi só no trabalho que ela já percebeu que o próprio corpo estava mandando mensagens de alerta para a saúde emocional.

Em uma relação que viveu, os sinais de ansiedade apareciam quando ela se sentia obrigada a dar satisfação, não conseguia ser ela mesma e acabou se afastando de algumas amizades. Na época, ela não sabia nomear o que estava vivendo. Hoje Claudia entende que era um relacionamento abusivo, com situações de violências veladas que, no geral, não eram vistas pela sociedade como algo errado. “Mas entre o certo e o errado existem muitas coisas”, afirma.

Essas situações deixaram marcas em Claudia, e ela passou a viver em um estado de alerta, com medo de algo ruim acontecer. “Não tem como passar por essas situações e sair ‘ilesa’. Nosso corpo vai guardar alguns traumas, e é preciso não só nomear mas dar sentido para isso”, reflete.

Quando fala em cuidar da própria saúde mental, Claudia costuma dançar, praticar yoga e “nutrir o corpo de afeto”. Ela também fala sobre a importância de se conhecer e de perceber o que o corpo precisa. Em um momento, ele pede por descanso. Em outro, o melhor é uma viagem para curtir as paisagens que mais gosta: cachoeira e serra.

“Amo viajar para esses lugares porque é uma forma de voltar para mim. É uma forma também de cuidar da minha saúde mental: fazer uma trilha, me reconectar com a natureza, estar só eu e a cachoeira. Para mim, é quase um lugar sagrado. […] Estar nesses lugares também é um passo de cuidado e desse conhecimento de si”, relata.

ATENÇÃO À AUTOMUTILAÇÃO ENTRE JOVENS

As dores emocionais também podem levar pessoas a se machucarem de propósito, mas sem a intenção de morrer. São beliscões, apertos, queimaduras e cortes, geralmente em partes do corpo que não ficam expostas — como os braços, a barriga ou a parte interna das coxas. Essa prática, que costuma aparecer na juventude, é três vezes mais frequente no sexo feminino do que no masculino, explica a psicóloga Elizabeth Carneiro, diretora da clínica de prevenção, diagnóstico e tratamento em psiquiatria e dependências Espaço Clif.

Há diferentes motivações para esse tipo de comportamento, e a principal deles é amenizar o sofrimento emocional por meio da dor física. A psicóloga afirma que há, ainda, os pacientes relatam sentir prazer nessa prática, além daqueles que se automutilam como uma forma de se punirem por algo que fizeram ou pensaram.

Entre os fatores de risco para esse comportamento, Elizabeth Carneiro explica que é comum a automutilação estar associada ao transtorno de personalidade borderline. “[Nesses casos], há uma grande impulsividade, uma sensação de vazio crônico, uma flutuação de humor muito intensa. Tem essa intensidade das emoções, as coisas ferem muito. É como se fosse uma pessoa que está em carne viva o tempo todo”. Mas a prática também pode estar presente em casos de estresse pós-traumático ou transtorno alimentar.

Os quadros de depressão, que muitas vezes culminam com tentativas de suicídio, muitas vezes o início é com automutilação. Por isso a importância de os pais e os colegas ficarem muito atentos ao aparecimento dessas marcas no corpo, porque elas existem. É uma questão de as pessoas terem o hábito de checar.
Elizabeth Carneiro
Psicóloga

É preciso estar atento, por exemplo, quando a menina tem o costume de esconder o corpo ou de puxar a pele ao redor da unha, podendo levar a sangramento. Aos pais e responsáveis, a psicóloga também indica não ter medo de falar e perguntar sobre o assunto, sem se contentar com as primeiras respostas — que podem ser “desculpas” para disfarçar. Ao perceber algum sinal, deve-se procurar ajuda especializada.

“Sem dúvida, [deve-se] buscar um psiquiatra e um psicólogo. Se essa pessoa já está se mutilando, já existe algum processo por trás disso, faz parte de um conjunto de situações que essa pessoa está vivendo. Às vezes, pode estar sofrendo bullying, os pais podem estar vivendo muitos conflitos em casa [ou] essa pessoa pode ter vivenciado uma situação traumática. […] Não existe uma medicação para automutilação. O que será medicado é o outro transtorno que existe”, afirma a psicóloga.

MEDIDAS DE PREVENÇÃO E CUIDADO

Reconhecer que precisa de ajuda é o primeiro passo tanto para a prevenção quanto para o tratamento de transtornos mentais, aponta Milena Bomfim. Devido a tabus e estigmas que ainda existem sobre o tema, muitas mulheres acabam demorando a procurar um apoio profissional. Essa resistência, também dificulta a adesão a tratamentos, quando necessário. “[Mas] hoje a medicina tem evoluído muito e tem sido uma ajuda importante nesse cuidado de transtorno mental feminino”, pondera a psicóloga.

Bomfim ainda destaca a importância do autoconhecimento e do autocuidado. “Tenho percebido, quando as mulheres chegam ao consultório, que elas vêm muito perdidas de si. Entramos em um movimento de tentar cumprir os papéis [exigidos] e vamos fazendo coisas que muitas vezes não têm a ver conosco, com o que desejamos. As pessoas perdem-se de si e acabam trazendo também essa possibilidade de não cuidar da saúde emocional”, lamenta.

O psiquiatra Igor Emanuel também destaca a importância do acompanhamento psicológico para essa prevenção. Ter apoio profissional é importante, segundo o médico, principalmente em grandes mudanças na vida — como casamento ou maternidade — e nas etapas com alteração hormonal. “São momentos de gatilhos, de vulnerabilidade para dificuldades emocionais”, alerta.

Além disso, praticar exercícios físicos, regular o estresse — por meio de mindfullness ou yoga, por exemplo — e manter uma alimentação adequada são pilares fundamentais para a saúde mental. Outro ponto importante destacado pelo psiquiatra é a socialização. “Vários estudos apontam que o isolamento, geralmente, aumenta a mortalidade, equivalendo até à carga tabágica de um maço de cigarro por dia. É importante evitar a solidão”, frisa o médico.