Vagão de trem queimado no Otávio Bonfim era último símbolo de estação construída há mais de 100 anos

Cargas e passageiros passaram pelo local durante quase nove décadas

Fortaleza sofreu, neste mês, mais um golpe na preservação de um patrimônio histórico: na madrugada do dia 15 de setembro, o último vagão da antiga Estação Otávio Bonfim, no bairro Farias Brito, foi destruído por um incêndio. Era o último remanescente de uma longa história de viagens do interior do Ceará à capital, que se iniciou há mais de 100 anos.

Em nota, a Secretaria Executiva Regional 3 informa que registrou um Boletim de Ocorrência e aguarda os resultados das investigações conduzidas pela Polícia Civil do Estado do Ceará. 

“A definição dos próximos passos para o local será baseada nas conclusões das investigações”, declarou a Pasta, justificando que “não existiu nenhum projeto de tombamento para o vagão e que a estrutura citada foi cedida pela Transnordestina à Secretaria da Cultura de Fortaleza em 2018”.

A Estação Otávio Bonfim, desativada totalmente em 2009, pertencia à Linha Sul da ferrovia cearense. Esta foi um desdobramento da linha da Estrada de Ferro de Baturité, aberta em 1872 a partir de Fortaleza. O itinerário chegou ao seu ponto máximo em 1926, quando alcançou a cidade do Crato, no Cariri.

Para entender o contexto de criação da linha e a importância dela para o período, o Diário do Nordeste consultou Cristina Holanda, historiadora e diretora do Museu Ferroviário do Ceará, e Alysson Maciel, também historiador e educador museal do equipamento.

Eles se basearam em dados de pesquisas realizadas para a composição da exposição de longa duração do Museu, que contou com a colaboração de pesquisadores acadêmicos e ferroviários. 

A criação da linha Sul

Originalmente, a linha Sul estava prevista para sair de Fortaleza e seu destino final seria a cidade de Baturité - o nome da primeira empresa de transportes ferroviários no Ceará, inclusive, foi Companhia Cearense da Via Férrea de Baturité SA. Porém, os caminhos foram sendo feitos em partes:

  • 1873 - o primeiro trecho inaugurado ia do Centro (Estação Central) até o Arronches (atual Parangaba)
  • 1876 - os trilhos estenderam-se até Pacatuba
  • 1877-1878 - período de paralisação
  • 1882 - alcançou Baturité
  • 1926 - atingiu o destino final: o Crato

Em paralelo, a chamada linha Norte começou a ser construída em 1878, saindo de Camocim, passando por cidades como Sobral e se encerrando em Crateús, no Sertão, também no ano de 1926. 

“A ferrovia no Ceará se insere no contexto de ampliação mundial do capitalismo, impulsionado pela Revolução Industrial inglesa, integrando de forma mais rápida o interior cearense com a capital e o exterior, possibilitando um crescente fluxo de mercadorias e pessoas”, explicam os historiadores.

Desde o seu início, lembram eles, a ferrovia no Ceará transportou passageiros e mercadorias, embora a prioridade tenha sido o transporte de cargas para agroexportação, como o café (em fins do século XIX e primeiras décadas do XX) e o algodão (a partir dos anos 1900).

Batismos da estação

A estrutura no atual bairro Farias Brito foi inaugurada em 31 de dezembro de 1922, inicialmente com o nome de “Quilômetro 3” - referência à sua localização no percurso. 

Depois, também ficou conhecida como “Matadouro”, pela proximidade com um abatedouro de gado. À época, a região também funcionava como entrada do campo de concentração do Alagadiço, que recebeu muitos flagelados da seca que assolava municípios dos sertões.

Para não saírem do local e perturbarem a “ordem pública”, os retirantes eram vigiados por soldados. O governo oferecia alimentação e água, mas soluções permanentes nunca saíram do papel. Em condições precárias, foram os flagelados que ajudaram a formar bairros como Alagadiço, Moura Brasil e Pirambu. 

Algum tempo depois, a estação receberia o nome de Otávio Bonfim (1884-1925), em homenagem a um dos engenheiros e chefe de tráfego da da Rede Viação Cearense (RVC). Ele faleceu vítima de infecção, com apenas 41 anos.

Encerramento das atividades

O prédio original da estação foi demolido pela Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) em 1979, para a construção de uma estrutura mais moderna para atender à então Coordenadoria de Transporte Metropolitano (CTM).

Como apontam Cristina Holanda e Alysson Maciel, o serviço de longa distância para passageiros foi encerrado em 1988. Contudo, o transporte de cargas continuou mesmo com a extinção da RFFSA, a partir da concessão para empresas particulares como a FTL - Transnordestina, usando o antigo ramal de Itapipoca, passando por Sobral e passando pelo Piauí.

“Diante das mudanças econômicas no Brasil a partir da década de 1960, os investimentos públicos nas ferrovias diminuíram, pois segundo o discurso oficial, eram muito onerosos e sem rentabilidade, preferindo-se investir nas rodovias”, situam os historiadores.

Em maio de 2009, o trem passou a rodar apenas da estação de Parangaba para a estação Vila das Flores (hoje Carlito Benevides, em Maracanaú). Assim, o trecho entre a Parangaba e o Otávio Bonfim foi desativado. O trecho João Felipe-Otávio Bonfim foi mantido por mais uma semana, mas também foi suspenso pela baixa demanda.

Com a implantação da Companhia Cearense de Transportes Metropolitanos (Metrofor), as antigas estações ferroviárias foram aos poucos sendo demolidas. A do Otávio Bonfim foi removida parcialmente, restando as colunas de sustentação e as fundações. 

Um grupo de ativistas moradores das imediações até defendeu a recuperação da Estação do Otávio Bonfim, com a ideia de o prédio abrigar um memorial para lembrar vítimas das secas. No entanto, o projeto também não foi colocado em prática.

O último vagão permaneceu com os trilhos e foi recolocado por lá após obras de requalificação da Avenida José Jatahy, que “substituiu” o itinerário da linha, em dezembro de 2018. Sem uso específico nos anos seguintes, o equipamento foi pichado, deteriorado e, no domingo, tomado pelo fogo.

Exposição permanente

O Museu Ferroviário Estação João Felipe recebe a exposição de longa duração intitulada “Nos trilhos do tempo: Histórias da ferrovia do Ceará”. A mostra apresenta um panorama da trajetória da ferrovia cearense e fica na antiga Estação Ferroviária Prof. João Felipe, que hoje abriga o Complexo Cultural Estação das Artes.

Foi de lá, também conhecida como Estação Central, que saiu o primeiro trem do Ceará, no dia 30 de novembro de 1873. Às 17h, o maquinista José da Rocha e Silva deu partida na locomotiva rumo à Parangaba e entrou para a história cearense.

O funcionamento do espaço é de quarta a sábado, das 12h às 20h; e domingo, das 9h às 17h, com visitação gratuita e aberta ao público. A entrada ocorre até 30 minutos antes do encerramento.