Nunca é fácil lidar com a perda de alguém querido, mas, quando um familiar ou um amigo morre de forma inesperada, diversos sentimentos podem tornar o luto ainda mais complicado. No caso de morte por suicídio, é comum que esse processo seja revertido por culpa e que os enlutados não encontrem, socialmente, abertura para falar sobre a dor que sentem. Para que o luto seja elaborado de forma saudável, porém, é preciso compartilhar os sentimentos. Falar, chorar, repetir a história quantas vezes for necessário.
“Tem uma diferença muito grande quando você vive um luto sozinho. Você não consegue ver cor na vida, não consegue ver possibilidades de caminhar, de refazer os seus planos. No luto — e no luto de uma morte repentina, inesperada e violenta como é o suicídio — tudo que você planejou com essa pessoa foi destruído. E foi destruído de uma forma que você não pode ficar falando sobre isso. É como se esse sofrimento não fosse reconhecido”, diz Lucinaura Diógenes, psicóloga clínica e diretora do Instituto Bia Dote.
Se você está se sentindo triste, tem pensamentos suicidas, intenções de ferir o próprio corpo, se sente sem esperança e pessimista na maior parte do tempo, ou conhece alguém que passa por essas ou situações semelhantes, isso pode estar ligado a um problema de saúde mental e há inúmeros tratamentos na rede pública ou privada capaz de oferecer ajuda. Como exemplos de locais que podem ser procurados, está o Centro de Valorização da Vida (CVV), que atende 24h pelo telefone 188 e sem custo de ligação ou via Chat, no cvv.org.br; o Movimento de Saúde Mental, no WhatsApp (85) 9 8106-7178, e o Hospital de Saúde Mental de Messejana, em Fortaleza, que dispõe de emergência 24 horas.
É nesse contexto que grupos de apoio podem ser um lugar para que sobreviventes do suicídio se expressem e aprendam, a partir de outros relatos, como outros enlutados ultrapassaram o primeiro ano ou as datas comemorativas. “Muitas vezes, aquele modelo pode não caber para você, mas é uma luz. No grupo tem aquela coisa de você segurar a mão do outro quando a pessoa está em um dia mais sofrido”, afirma a psicóloga.
Nos grupos de apoio oferecidos pelo Instituto, Lucinaura participa como psicóloga e como mãe enlutada. A organização foi criada em 2013, cinco anos após a morte de Bia por suicídio, e foi uma forma de a família lidar com o próprio luto e ajudar outras pessoas que passem pela mesma situação. Também foi uma completa mudança de vida. Geóloga pela primeira formação, ela começou a estudar Psicologia, especializou-se em prevenção e posvenção do suicídio e fez pós-graduação em Tanatologia.
Antes da morte de Bia, a gente nunca se aproximou desse tema. Também nunca passou pela minha cabeça trabalhar com um projeto social nesse âmbito e nem fazer Psicologia. Não estava nos nossos planos, mas hoje eu me sinto realizada. Tenho muita satisfação em trabalhar com isso. Sei que é um tema pesado, mas é um tema que faz parte da minha história.
Fabio Gomes de Matos e Souza, professor titular de Psiquiatria da Universidade Federal do Ceará (UFC) e fundador e coordenador do Programa de Apoio à Vida (Pravida), destaca o caráter inesperado do luto por suicídio e explica que isso o torna duro para quem passa por ele. O médico também aponta que é comum surgirem questionamentos como “o que eu podia ter feito?” ou “o que eu não notei?”, e que essa culpa torna “muito difícil” a posvenção — termo que se refere aos cuidados com a pessoa enlutada.
Para quem está lidando com uma perda assim, o médico recomenda buscar grupos de apoio para poder compartilhar os sentimentos. Ele também destaca a importância de as famílias que perderam uma pessoa por suicídio receberem acompanhamento psicológico prioritário. “Teria que ser um acompanhamento sistemático para, em qualquer problema maior, tomar as medidas necessárias”, afirma.
Após a perda de um ente por suicídio, a psicóloga Susana Kramer de Mesquita Oliveira aponta que há dois caminhos: a desesperança ou um “despertamento", um redirecionamento para a família como um todo. “Aquilo dali pode levá-la para uma retomada de posição. E os profissionais, os programas de apoio, precisam entrar justamente nessa brecha de entender que ali é uma porta de possibilidade para ressignificar o próprio sistema familiar”, explica.
Vice-coordenadora do Laboratório de Relações Interpessoais (L’ABRI) da UFC e diretora-fundadora do Projeto Vincula (Prevenção de Suicídio pelos Vínculos Familiares), Susana chama atenção para a necessidade de que todos os membros façam parte dessa retomada de vida da família, para evitar que alguém não elabore o luto e não supere a situação. Isso inclui as crianças, com adaptação para a linguagem adequada para tratar sobre o assunto.
SETEMBRO AMARELO
O suicídio é um fenômeno multifatorial e um problema de saúde pública que tem impactos em toda a sociedade. No Brasil, segundo informações da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), mais de 15 mil casos são notificados anualmente, e há tendência de crescimento entre os jovens.
Desde 2012, a ABP desenvolve ações para apoiar e conscientizar a população sobre a importância de cuidar da saúde mental e prevenção do suicídio. Com isso, o dia 10 de setembro passou a ser, oficialmente, o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio, com a campanha Setembro Amarelo. Neste ano, o lema é “Se precisar, peça ajuda!”, e há cartilhas informativas sobre o tema para a imprensa, para pais e para a população em geral.
Fabio Gomes de Matos e Souza aproveita a campanha e o ano eleitoral para pedir mais investimentos públicos para saúde mental e para a prevenção e a posvenção do suicídio. Ele defende, por exemplo, que psiquiatras e psicólogas não precisam estar apenas nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), mas também nos postos de saúde.
O médico também aponta a necessidade de profissionais e familiares estarem atentos a sinais de alerta. Ele indica que devem ser feitas três perguntas: “você tem planos para o futuro?”, “para você, qual o valor da sua vida?” e “se a morte viesse hoje, ela seria bem-vinda para você?”.
Se o seu familiar responder da pior maneira possível — que não tem planos para o futuro, que a vida para ela não serve para coisa nenhuma e que a morte seria bem-vinda — procure imediatamente um profissional de saúde mental.
Susana Kramer aponta que existem estágios em uma crise de suicídio, sem que necessariamente esse termo tenha vindo à tona, e cita alguns sinais, como pensamento enrijecido, ambivalência — oscilação muito grande nas escolhas —, impulsividade, depressão, descontinuidade na vida e desânimo.
“Todos esses sinais realmente mostram que, com certeza, ele precisa de ajuda, independentemente de estar falando de suicídio, de morte (ou não). O funcionamento dele não está bom para a vida”, afirma a psicóloga.
Segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria, todas as pessoas têm alguns fatores protetivos e alguns fatores de risco para o suicídio. Com isso, a entidade recomenda algumas medidas para aumentar os fatores de proteção:
- Aumentar contato com familiares e amigos
- Buscar e seguir tratamento adequado para doença mental
- Envolvimento em atividades religiosas ou espirituais
- Iniciar atividades prazerosas ou que tenham significado para a pessoa, como trabalho voluntário e/ou hobbies
- Reduzir ou evitar o uso de álcool e outras drogas
AÇÕES DO PODER PÚBLICO PARA A SAÚDE MENTAL
A entrevista com a psicóloga Susana Kramer foi feita após a capacitação “Família: Escola de Vida”, promovida pelo Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) na última quinta-feira (5) por meio do Programa Vidas Preservadas, do Centro de Apoio Operacional da Saúde (Caosaúde) e do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (Ceaf).
O Programa Vidas Preservadas foi criado em 2018 devido à existência de um vazio assistencial em relação às políticas de prevenção suicídio, explica a promotora de Justiça Ana Karine Leopércio, coordenadora do Caosaúde e do Vidas Preservadas. O objetivo, de acordo com ela, era mobilizar municípios, universidades e organizações não-governamentais (ONGs) para formar “uma grande rede” para tratar o tema como algo prioritário.
Atualmente, 116 municípios cearenses já aderiram ao Programa e, deles, 67 já apresentaram planos para o fluxo de atendimento. “Desde então, o Ministério Público tenta trabalhar para que esses fluxos sejam construídos e de fato sejam aplicados, para que essa assistência seja o mais rápido e da melhor forma possível, e para que haja não só assistência do psicólogo e do psiquiatra, mas grupos terapêuticos, inclusive para trabalhar a questão da posvenção do suicídio”, afirma a promotora.
Ela aponta que há diversos desafios, como a comunicação entre os serviços para o devido encaminhamento dos pacientes. “O Ministério Público se coloca nessa posição de articulador das políticas públicas, de um canal de diálogo, mas também um canal de exigência quando essa articulação não funciona”, explica.
Monitorar os indicadores sobre o fluxo nas diferentes cidades também é um desafio. Por isso, o MPCE lançou o “Laços de Vidas”, que terá como base um formulário que deve ser preenchido pelos municípios sobre regulação, tempo para atendimento, quadro de profissionais e comunicação entre as diferentes secretarias.
O Diário do Nordeste questionou as secretarias de saúde do Ceará (Sesa) e de Fortaleza (SMS) sobre as ações para prevenção do suicídio e para prestar assistência a pessoas em luto. Em entrevista, a coordenadora de Saúde Mental da Sesa, Rane Félix, destacou dois eixos: formação e discussão com a comunidade.
Na formação, ela citou uma parceria com a Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE) para a criação do Programa de Educação Permanente da Rede de Atenção Psicossocial. São 600 vagas neste ano e outras 600 para 2025, voltadas para a rede Sesa e para profissionais da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Ela cita, ainda, o Movimento da Saúde Mental na Atenção Primária, que visa discutir o tema nos postos de saúde, e um ciclo de debate sobre a temática em todo o Estado.
“Estamos fazendo uma parceria com a Secult, por meio do Instituto Dragão do Mar, para fazer ciclos de debate nos equipamentos culturais do Estado, com a população, com lideranças, comunidade, profissionais e gestores. O suicídio e a saúde mental precisam ser discutidos com as pessoas. É uma questão que envolve a família e a rede comunitária de apoio”, finaliza.
Em nota, a SMS informou que “está fortalecendo a Rede de Atenção Psicossocial, com ações interinstitucionais de caráter consultivo e propositivo”. Dentre as ações, a Pasta destacou a capacitação dos profissionais para atuar nos diferentes níveis de complexidade relacionados à saúde mental.
“A SMS também atualizou seus fluxos e estabeleceu a linha de cuidado para a atenção integral às pessoas e familiares do usuário com ou sem ideação suicida, suicídio consumado ou violência autoprovocada”, finaliza.
SERVIÇO
Confira locais onde é possível buscar atendimento de saúde mental gratuito em Fortaleza nesta matéria do Diário do Nordeste.
Instituto Bia Dote
O que: Grupo de Apoio aos Enlutados Sobreviventes do Suicídio e Clínica Social
Onde: Av. Barão de Studart, 2360, sala 1107
Telefone: (85) 3264-2992 / (85) 99842-0403
Programa de Apoio à Vida
Telefone: (085) 98400-5672
E-mail:contato.pravida@gmail.com
Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)
O serviço do Caps é “porta aberta”, e o usuário pode procurar o atendimento diretamente ou ser encaminhado por meio de outros serviços da rede de saúde. Veja a listagem dos Caps do Ceará.
Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM)
A unidade dispõe de emergência 24 horas para pacientes com transtornos mentais graves que estejam em crise.
Onde: Rua Vicente Nobre Macêdo, S/N — Messejana
Quando: Todos os dias da semana, 24h por dia
Centro de Valorização da Vida (CVV)
Atendimentos por meio do telefone 188, por chat, e-mail e de forma presencial.
Onde: Rua Ministro Joaquim Bastos, 806 — Bairro de Fátima