A água destinada ao abastecimento humano deveria estar em níveis adequados de potabilidade. Contudo, em pelo menos 86 cidades cearenses, nos últimos dois anos, foram encontradas substâncias nocivas ao organismo em concentrações acima das máximas permitidas pela legislação brasileira.
É o que mostra levantamento realizado pelo Diário do Nordeste a partir de dados públicos disponibilizados pelo Programa Nacional de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Vigiágua), do Ministério da Saúde. O número representa 46% dos 184 municípios do Estado.
Nessas cidades, as análises laboratoriais desenvolvidas pela Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), tanto no primeiro quanto no segundo semestre dos dois anos, acusaram valores altos para nitratos e trihalometanos. Entenda a diferença:
- Nitratos: costumam ser oriundos de fertilizantes ou de esgotos e levar a complicações no transporte de oxigênio em bebês (daí o nome de “síndrome do bebê azul”) ou a um maior risco de câncer gastrointestinal em adultos, segundo o Ministério da Saúde.
- Trihalometanos (THM): sendo o clorofórmio o principal, são compostos que se formam durante o próprio processo de desinfecção das águas destinadas ao consumo humano e também são potencialmente cancerígenos.
Confira abaixo um mapa do Ceará indicando que substâncias foram encontradas nas cidades com resultados acima do limite permitido:
Em nota, a Cagece informou que, em média, realiza mais de 6 milhões de análises laboratoriais por ano, e que as amostras (retiradas das águas brutas dos açudes, do processo de tratamento e da malha de distribuição) fora dos parâmetros representam apenas de 0,008 a 0,01% do total.
Ainda assim, ao se detectar “a mínima variação” durante o tratamento ou a distribuição, declarou tomar “providências imediatamente, como dosagens dos produtos químicos, vazões, carreira de filtração, etc; e na rede são efetuadas descargas, limpezas, recloração, etc; assim como também são investigadas todas as causas que provocaram tal situação”.
A Companhia ressaltou “o compromisso de estar sempre trabalhando para levar água com qualidade e continuidade para toda a população cearense”.
Concentrações acima do ideal
No caso dos nitratos, detectados em 20 cidades, a portaria Nº 888/2021 do Ministério da Saúde define concentração máxima de 10 mg por litro. Porém, algumas análises retornaram resultado de quatro a cinco vezes maiores, segundo o Vigiágua.
Já os trihalometanos foram encontrados com mais frequência, em 68 municípios. Eles devem ter concentração máxima de 0,1 mg por litro, mas a maioria dos resultados no Ceará indicam valores de duas a três vezes maiores - podendo chegar a 25 vezes mais.
Não foram detectadas concentrações de produtos enquadrados como agrotóxicos ou radioativos, como ocorreu em outras cidades brasileiras.
De acordo com Michael Viana, pesquisador, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador do Laboratório de Efluentes e Qualidade de Água (Equal), a presença de nitratos e THM na rede de abastecimento pode estar atrelada principalmente ao despejo de esgotos nos reservatórios de captação da água.
Isso porque os nitratos se formam a partir de reações da amônia na própria natureza, mas essa substância pode estar em grande concentração nos esgotos. Já o clorofórmio surge das reações do cloro das estações de tratamento com a matéria orgânica dos efluentes sanitários.
Porém, os dois tipos de compostos são de difícil remoção com tecnologias convencionais, e a aplicação de métodos específicos seria “economicamente inviável”. Logo, o principal caminho para impedi-los é o preventivo.
Acredito que a melhor forma de evitar seria fazendo essa remoção no ato do descarte de resíduos na natureza, para que não cheguem com condições de formar nitratos ou trihalometanos. Existem tecnologias de desinfecção que, por exemplo, não utilizam o cloro, então não haveria essa formação.
Para o pesquisador, a periodicidade das análises também poderia ser adaptada de região para região, já que o Brasil é um “país continental” e abrange “realidades extremamente diferentes”. Ou seja, os Estados poderiam ter normas de acordo com suas especificidades.
substâncias diferentes na água são monitoradas, segundo a Cagece, através de uma rede de laboratórios espalhados por todo o Ceará; entre eles, em Juazeiro do Norte, Acopiara, Russas, Quixadá, Fortaleza, Tianguá, Crateús, Sobral e Itapipoca, e o Laboratório Central, em Fortaleza.
Segundo a Companhia, a quantidade e a frequência das análises seguem planos de amostragem validados pelas Vigilâncias Sanitárias Municipais e pelo Núcleo de Vigilância Sanitária e Ambiental (Nuvam), da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa).
Divulgação de resultados
Embora a legislação brasileira exija uma série de critérios para verificar a potabilidade da água para consumo humano, a Cagece divulga em seus relatórios públicos apenas “parâmetros básicos”, como cor, turbidez, cloro residual e coliformes totais.
Na última análise de Fortaleza, de fevereiro de 2022, mais de 95% das 312 amostras analisadas estavam em conformidade com os critérios mencionados acima. Porém, não há menção aos resultados de outros produtos químicos.
O Ministério da Saúde define que toda água para consumo humano, fornecida coletivamente, deve passar por processo de desinfecção, e que as águas provenientes de manancial superficial devem ser submetidas ao processo de filtração antes da desinfecção.
Padrão irregular
No Ceará, o Vigiágua é coordenado e acompanhado pela Secretaria da Saúde. Ela atua em caráter preventivo e rotineiro, avaliando permanentemente os riscos à saúde humana de cada sistema, e em caráter investigativo, em situações de emergências e surtos relacionados a doenças de transmissão hídrica.
Periodicamente, a Sesa publica boletins epidemiológicos sobre o Programa. O último, de 2021, mostra que:
- 87,15% da população cearense é abastecida por sistemas de abastecimento (SAA, que é a rede encanada);
- 4,58% abastecida por soluções alternativas coletivas (SAC, como chafarizes, dessalinizadores, carros-pipas e caixas de distribuição pública);
- 1,92% é abastecida por soluções alternativas individuais (SAI, como poços e cisternas);
- Não há informações sobre os demais 6,35%.
Nos dois últimos documentos, a Pasta considerou “insatisfatórios” os resultados relacionados à presença de coliformes de origem fecal na água - 36,9% e 32,3% das amostras, respectivamente -, elencando alguns fatores para a precariedade das formas de abastecimento, como:
- armazenamento inadequado
- intermitência no abastecimento
- fontes de água sem nenhuma proteção
- coletas em pontos não recomendados nos procedimentos
Entre as enfermidades relacionadas à ingestão de água de má qualidade, segundo o Ministério da Saúde, estão a doença diarreica aguda (DDA), amebíase, cólera, leptospirose e hepatite infecciosa. Os sintomas mais comuns são vômitos e diarreias, podendo levar a dores abdominais, dor de cabeça e febre.